Metafísica da Guerra, de Julius Evola

Capítulo II
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Acabamos de ver como o fenómeno do heroísmo guerreiro pôde revestir várias formas e obedecer a diferentes significados, uma vez fixados os valores de autêntica espiritualidade que o diferenciam profundamente.
Por agora, vamos começar examinando certas concepções relativas às antigas tradições romanas.
Em geral, não existe mais do que um conceito laico do valor da romanidade na antiguidade. O romano não foi mais que um soldado no sentido restrito da palavra, e graças às suas virtudes militares, unidas a uma feliz concorrência de circunstâncias, pôde conquistar o mundo.

Antes de tudo, o romano alimentava a intima convicção de que Roma, seu “Imperium” e sua “Aeternitas” eram derivadas de forças divinas. Para considerar esta convicção romana, sob um aspecto exclusivamente “positivo”, é preciso substituir esta crença por um mistério: mistério de como um punhado de homens, sem nenhuma necessidade de “terra” ou “pátria”, sem estarem possuídos por nenhum destes mitos ou paixões, que tanto atraem os modernos e com as quais justificam a guerra e promovem acções heróicas, mas sob um estranho e irresistível impulso, este mistério arrastava os romanos, cada vez mais longe, de país em país, reduzindo tudo a uma “ascese de poder”. Segundo testemunhos de todos os clássicos, os primeiros romanos eram muito religiosos – “nostri maiores religiosissimi mortales” – mas esta religiosidade não ficava só dentro de uma esfera abstracta e isolada, espalhava-se na prática, no mundo da acção e por consequência, abarcava também a experiência guerreira.

Um colégio sagrado formado pelos “Festivos” presidia em Roma a um sistema bem determinado de ritos, que serviam de contrapartida mística a qualquer guerra, desde a sua declaração até à sua conclusão. De uma maneira geral, é certo que um dos princípios da arte militar romana era evitar travar batalhas antes que os signos místicos tivessem, por assim dizer, indicado o “momento”.

Com as deformações e preconceitos da educação moderna não se quererá ver nisto mais que uma super estrutura extrínseca feita à base de superstições. Quanto aos mais benévolos, não será mais que um fatalismo extravagante. Mas não era nem uma coisa nem outra. A essência da arte de adivinhação praticada pelo patriciado romano, assim como outras disciplinas análogas de carácter mais ou menos idêntico no ciclo das grandes civilizações indo-europeias, não era descobrir o “destino” na base de uma supersticiosa passividade. Pelo contrario, era descobrir antecipadamente os pontos de conjugação com influências invisíveis, para concentrar as forças dos homens e torná-las mais poderosas, de multiplicá-las e as induzir a actuar sobre um plano superior, com o fim de varrer - quando a concordância era perfeita - todos os obstáculos e resistências no plano material e espiritual. É difícil pois, a partir disso, duvidar do valor romano, a ascese romana de potência não era só na sua contrapartida espiritual e sacra, instrumento da grandeza militar e temporal, mas também num contacto e uma união com as forças superiores.

Se fosse este o momento, poderíamos citar numerosa documentação para fundamentar esta tese. No entanto, nos limitaremos a recordar que a cerimónia do triunfo tinha em Roma um carácter muito mais religioso que laico-militar, e numerosos elementos permitem deduzir que o Romano atribuía a vitoria dos seus “duces” mais a uma força transcendente, que se manifestava real e eficazmente através deles, no seu heroísmo e inclusive por meio do seu sacrifício (como no rito da “devotio” no qual os chefes se imolavam), que a suas qualidades simplesmente humanas. Desta forma, o vencedor, revestindo as insígnias do Deus capitolino supremo, se identificava com ele, era sua imagem, e depositava nas mãos deste Deus, os louros da sua vitória, em homenagem ao verdadeiro vencedor.

No fundo, uma das origens da apoteose imperial, era o sentimento que debaixo da aparência do Imperador se escondia um “numen” imortal, incontestavelmente derivado da experiência guerreira: O “Imperatore”, originariamente era o chefe militar aclamado sobre o campo de batalha, no momento da vitória, mas nesse instante aparecia também como transfigurado por uma força vinda do alto, terrível e maravilhosa que dava a impressão do “numen”. Esta concepção, por outro lado, não é exclusivamente romana, encontra-se em toda a antiguidade clássico-mediterrânea e não se limitava aos generais vencedores, estendia-se aos campeões olímpicos e aos sobreviventes dos combates sangrentos do circo. Na Helade, o mito dos Heróis confunde-se com as doutrinas místicas, como o orfismo, e identifica o guerreiro vencedor como o iniciado, vencedor da morte. Testemunhos precisos sobre um heroísmo e um valor que emanavam, mais ou menos conscientemente, das vias espirituais, abençoados não só pelas conquistas materiais e gloriosas, mas também pelo seu aspecto de evocação ritual e de conquista espiritual.

Passemos a outros testemunhos desta tradição que, pela sua natureza, é metafísica e, em consequência, o elemento “raça” não pode ter mais que uma parte secundária e contingente. Dizemos isto, pois mais adiante, trataremos da “Guerra Santa” que foi praticada no mundo guerreiro do Sacro Império Romano-Germânico. Esta civilização apresentava-se como um ponto de confluência criadora de vários elementos: um romano, um cristão e um nórdico.

Relativamente ao primeiro elemento, já fizemos alusão a ele no contexto que nos interessa. O elemento cristão se manifestara sob os rasgos de um heroísmo cavalheiresco supra nacional com as cruzadas. Resta o elemento nórdico. Com o objectivo de que ninguém se alarme, assinalamos que se trata de um carácter essencialmente supra-racial, portanto incapaz de valorizar ou denegrir um povo em relação a outro. Para fazer alusão a um plano no qual nos auto excluímos, de momento nos limitaremos a dizer que nas evocações nórdicas, mais ou menos frenéticas que se celebram hoje em dia “ad usum delphini” na Alemanha nazi, por surpreendente que possa parecer, se assiste a uma deformação e a uma depreciação das autênticas tradições nórdicas tal como foram originariamente e tal como se perpetuaram nos Príncipes que tinham por grande honra o poder de se denominarem “romanos” ainda que sendo de raça teutónica. Pelo contrário, para numerosos escritores “racistas” de hoje, “nórdico” não significa mais que “anti-romano” e “romano” teria mais ou menos um significado equivalente a “judeu”.

Dito isto, é interessante reproduzir uma significativa forma guerreira da tradição celta: “combatei por vossa terra e aceitai a morte se for preciso: pois a morte é uma vitória e uma libertação da alma”. Este conceito corresponde, em nossas tradições clássicas, à expressão “mors triumphalis”. Quanto à tradição realmente nórdica, ninguém ignora a parte do Walhalla, reino imortal reservado, não somente aos “homens livres”, de fonte divina, mas também aos Heróis mortos no campo de honra (Walhalla, significa literalmente “o reino dos eleitos”). O Senhor deste lugar simbólico é Odin-Wotan conforme contado na Ynglingasaga, como aquele que, pelo seu sacrifício simbólico na “árvore do mundo”, havia indicado aos Heróis, um modo de esperar o divino descanso, um lugar onde se vive eternamente sobre um cume luminoso e resplandecente, para além das nuvens. Segundo esta tradição, nenhum sacrifício, nenhum culto era tão grato a Deus, nem mais rico em recompensa no outro mundo, como aquele realizado pelo guerreiro que combate e morre lutando. Ainda há mais: o exército dos heróis mortos em combate deve reforçar a falange dos “heróis celestes” que lutam contra o Ragna-rök, ou seja, contra o destino do “obscurecimento do divino” que, segundo os ensinamentos, como no caso dos clássicos gregos, (Hesiodo) pesa sobre o mundo desde as idades mais remotas.

Encontramos este tema sobre formas diferentes nas lendas medievais que concernem à “última batalha” que livrará o Imperador jamais morto. Aqui, para perceber o elemento universal, temos que trazer à luz a concordância de antigos conceitos nórdicos (que, diga-se de passagem, Wagner desfigurou com o seu romantismo empolgado, confuso e teutónico) com as antigas concepções iranianas e persas. Alguns se surpreenderão ao saber que as famosas Walkirias não são quem escolhe as almas dos guerreiros destinados ao Walhalla, mas sim a personificação da parte transcendente destes guerreiros, cujo equivalente exacto são as fravashi que na tradição irano-persa estão representadas como mulheres de luz e virgens arrebatadas das batalhas. Personificam mais ou menos as forças sobrenaturais em que as forças humanas dos guerreiros ”fiéis ao Deus da Luz” podem transfigurar-se e produzir um efeito terrível e turbulento nas acções sangrentas. A tradição iraniana continha igualmente a concepção simbólica de uma figura divina - Mithra, concebido como o “guerreiro sem sono” - que à frente das fravashi de seus fiéis, combate contra os emissários do deus das trevas, até à aparição do Saoshyant, senhor de um reino futuro, de “paz triunfal”.

Estes elementos da antiga tradição indo-europeia, repetem sempre os temas da sacralidade da guerra e do herói que não morre realmente, senão que passa a ser soldado de um exército místico numa luta cósmica, interferindo visivelmente com os elementos do cristianismo: pelo menos do cristianismo que pode assumir a divisa ”Vita est militia super terram” e reconhecer que não somente com a humildade, caridade, esperança e outras, mas também com uma certa violência – a afirmação heróica, aqui – é possível aceder ao “ Reino dos Céus”. É precisamente desta convergência de temas que nasceu a concepção espiritual da “Grande Guerra” própria da Idade Média das Cruzadas e que vamos analisar, debruçando-nos especialmente sobre o aspecto interior individual destes ensinamentos, sempre actuais.

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