Metafísica da Guerra, de Julius Evola

Capítulo IV
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Não se deve achar estranho, que depois de se examinar um conjunto de tradições ocidentais, relativas à guerra santa, quer dizer, à guerra com valor espiritual, nós nos propomos agora examinar este conceito como foi formulado pela tradição islâmica. Com efeito, nosso objectivo, como já o sublinhamos muitas vezes, é de pôr em relevo o valor objectivo de um princípio, pela demonstração da sua universalidade, da sua conformidade ao quod ubique, quo ab omnibus e quod semper. Somente assim, podemos ter a sensação que certos valores têm uma conotação absolutamente diferente do que podem pensar uns e outros, mas também, na sua essência, eles são superiores às formas particulares que assumiram para se manifestar nas duas tradições históricas. Quanto mais reconhecermos a correspondência interna das formas, e seu princípio único, mais aprofundaremos a própria tradição, até a intuir integralmente e a compreender partindo de seu ponto original e metafísico.

Historicamente, devemos sublinhar que a tradição islâmica, na parte que nos interessa, é de certa maneira herança da tradição persa, uma das mais altas civilizações indo-europeias. A concepção mazdeísta original da religião como milícia sob o signo do “Deus de Luz” , e da existência na terra como uma luta incessante para arrancar seres e coisas de um poder anti-Deus, é o centro da visão persa de vida. Deve-se considerar esta visão como a contrapartida metafísica e o fundo espiritual das lides guerreiras, cujo apogeu foi a edificação do império persa do “Rei dos reis”. Depois da queda da grandeza persa, alguns resquícios desta tradição subsistiram no ciclo da civilização árabe medieval, sob formas mais materiais e algumas vezes exageradas, mas sem nunca anular efectivamente o motivo original de espiritualidade.

Aqui, nós nos referimos às tradições deste género principalmente porque elas colocam em evidência um conceito muito útil para esclarecer posteriormente a ordem de ideias que nos propomos a expor. Trata-se dum conceito da grande guerra santa, distinto da “pequena guerra”, mas, ao mesmo tempo ligada a esta última de acordo com uma correspondência especial. A diferencia baseia-se num hadît (verso) do Profeta, que ao retornar duma expedição guerreira declarou: - ” nós voltamos da pequena guerra santa para a grande guerra santa”.

Aqui a pequena guerra, corresponde à guerra exterior, à guerra sangrenta e que se faz com armas materiais contra o inimigo, contra o “bárbaro”, contra uma raça inferior diante da qual reivindicamos um direito superior, ou então, quando a expedição é dirigida por um motivo religioso contra o “infiel”. Por mais terríveis e trágicos que possam ser os acidentes, por mais monstruosas que possam ser as destruições, nada mais resta a esta guerra, metafisicamente é sempre a “pequena guerra”. A “grande guerra santa”, é pelo contrário, de ordem interna e espiritual, é o combate que se trava contra o inimigo, ou o “bárbaro”, ou o “infiel” que cada um abriga em si, e que vai surgir em si mesmo, no momento que se quer submeter todo o seu ser a uma lei espiritual. Tanto quanto preconceito, desejo, paixão, instinto, fraqueza e cobardia interior, o inimigo que habita dentro do homem deve ser vencido, quebrado na sua resistência, encarcerado e dominado ao homem espiritual: tal é a condição para se atingir a libertação interior, a “paz triunfal” que permite participar naquilo que está além da vida e da morte.

È simplesmente ascetismo - dirão alguns. A grande guerra santa é a ascese de todos os tempos. E qualquer um estará tentado a acrescentar: é a via daqueles que fugiam do mundo e com a desculpa de uma luta interior transformam-se em rebanhos de pacifistas. Não é nada disto. Depois da distinção entre as duas guerras, expomos agora a sua síntese. È próprio das tradições heróicas prescrever a “pequena guerra “ , ou seja, a verdadeira guerra, sangrenta, como um instrumento para a “Grande Guerra Santa”, até ao ponto em que, finalmente, as duas não terminam sendo mais que uma só e mesma coisa.

È assim que no Islão, “guerra santa” – jihâd e “caminho de Deus” – são indiferentemente utilizados por uns e por outros. Quem se bate pelo “caminho de Deus”: um célebre hadîth, muito característico desta tradição diz : - “ o sangue dos Heróis está mais perto do Senhor que a tinta dos sábios e as orações dos devotos”. Aqui, e também nas tradições que já falamos, como a ascese romana da potência e a clássica mors triumphalis, a acção assume o exacto valor de uma ultrapassagem interior de acesso a uma via livre de obscuridade, do contingente, de dúvidas e da morte.

Em outros termos, as situações, os riscos, as provas inerentes às expedições guerreiras provocam a aparição do “inimigo” interior, que enquanto instinto de conservação, crueldade ou covardia, compaixão ou furor cego, surge como aquele que deve ser vencido, precisamente no momento exacto de vencer o inimigo exterior. Isto mostra que o ponto decisivo é constituído pela orientação interior, a permanência inabalável que é o espírito na dupla luta: - sem precipitação cega, nem transformação em brutos desconcertados, mas pelo contrário, total domínio das forças mais profundas, controle para nunca ser ludibriado interiormente, mas ficar sempre senhor de si mesmo, e este domínio permite de se afirmar acima de qualquer limite.

Mais à frente abordaremos uma outra tradição, onde esta situação é representada por um símbolo muito característico: - um guerreiro e um ser divino impassível, que sem combater, sustém e conduz o soldado, ao lado do qual ele se encontra, e estão no mesmo carro de combate. È a personificação da dualidade dos princípios do verdadeiro herói, cujas emanações têm sempre qualquer coisa de sagrado, e do qual ele é portador.

Na tradição islâmica, podemos ler num dos textos mais importantes: “ Combatei no caminho de Deus (quer dizer na guerra santa), aquele que sacrifica o caminho terrestre por aquele do além: pois aquele que combate no caminho de Deus e seja morto, ou vencedor, nós daremos uma imensa recompensa”. A premissa metafísica segundo a qual é dito: “combatei segundo a guerra santa aqueles que vos fazem a guerra””. “ Matai-os onde quer que os encontreis e esmagai-os. Não vos mostreis fracos nem os convideis à paz ” pois “ a vida terrestre é somente um jogo e um passatempo”, e “ quem se mostra avarento, só é avarento consigo mesmo”. Este ultimo principio é evidentemente relacionado com o fac-simile do evangelho: quem quer salvar sua própria vida a perderá, e quem a perde, a vive realmente”, confirmado por esta outra passagem: “ E a vós que credes, quando vos for dito: “vinde à batalha, pela guerra santa” vós ficastes imóveis? Vós preferistes a vida deste mundo à vida futura”, porque “ vós esperais de nós uma coisa, recompensa e não os dois supremos, vitória ou sacrifício?”.

Esta outra passagem é digna de atenção: “ a guerra vos foi ordenada, embora vos desagrade. Mas, qualquer coisa que seja boa para vós pode vos desagradar, e agradar-vos aquilo que é mau para vós: Deus, disse, então vós nada sabeis”, que é muito próximo de “eles preferem ficar entre aqueles que sobram: uma marca é gravada em seus corações, assim eles não o compreendem. Mas o apóstolo e aqueles que crêem com ele e combatem com aquilo que têm e com a sua própria pessoa, a eles a recompensa – e serão eles que prosperam – na grande felicidade.”


Aqui temos uma espécie de amor fati, uma intuição misteriosa, uma evocação e cumprimento heróico do destino, dentro da intima certeza que, quando existe a “intenção justa”, quando a inércia e a covardia são vencidas, o estimulo vai além da própria vida e da vida dos outros, além da felicidade e da aflição, guiado no sentido de um destino espiritual e duma sede de existência absoluta, dando então nascença a uma força que não falhará o objectivo absoluto. A crise de uma morte trágica e heróica passa a contingência sem interesse, e que, em termos religiosos é assim exprimida: “ Aqueles que forem mortos no caminho de Deus (aqueles que morrem em combate na guerra santa), a sua realização não será perdida. Deus os guiará e disporá de suas almas. Ele os fará entrar no paraíso que lhes revelou.”

Então o leitor se encontra envolvido por ideias expostas no mais alto e que são baseadas nas tradições clássicas e nórdico-medievais, no que se refere a uma imortalidade privilegiada e reservada aos heróis, os únicos que, segundo Hesiodo, habitam as ilhas simbólicas e onde levam uma existência luminosa e inatingível, à semelhança daqueles do Olímpio. Na tradição islâmica, encontram-se frequentes alusões ao facto que certos guerreiros, mortos na “guerra santa”, na verdade nunca morreram, dissertação somente simbólica, e muito menos a criticar certos estados sobrenaturais, separados das energias e destinos dos vivos. Não é possível entrar neste campo, que é muito misterioso e que exige referências que não interessam à natureza deste estudo.

Na verdade, hoje em dia, e precisamente em Itália, os rituais encontram uma força singular, pela qual uma comunidade guerreira declara “presente” os camaradas mortos no campo de honra. Parte de uma ideia que tudo que contem um processo evolutivo, e nos nossos dias, dotado de um carácter alegórico e de máximo de ética, tem na sua origem um valor de realidade (e todo o ritual é acção e não simples cerimónia), deve-se pensar que os rituais guerreiros actuais possam ser matéria de meditação e aproximação do mistério contido nos ensinamentos que acabamos de falar: a ideia que os heróis não estão verdadeiramente mortos, ou como aqueles vencedores que, à imagem do César romano, permanecem “vencedores perpétuos” no centro de uma linhagem.

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