Tigre Branco

Vindo de Espanha, chegou-nos por mão amiga este texto (recomendação) que traduzimos e agora publicamos, ficando desde já a aguardar a chegada deste livro ao nosso país, o que se prevê para Março próximo.

* * *

Por Fernando Sánchez Drago
Há muito tempo que não recomendo um livro. Hoje recomendarei um que me foi recomendado por Javier Moro. Por certo que recomendo também o seu último (El sari rojo, Seix Barral) e todos os anteriores. Javier tem a virtude – penso eu – de adiantar-se sempre: escreve os livros que eu gostaria de escrever. Isso dá-me alguma raiva, mas não me impede de ser-lhe devoto, render-lhe admiração e professar-lhe amizade.

O livro ao qual me vou referir-me é uma novela, trata da Índia de hoje, foi escrita por Aravind Adiga e chama-se Tigre Branco. Ganhou o Main Booker Prize de 2008. A edição espanhola, traduzida com pulso firme por Santiago del Rey, é da Miscelânea. O seu autor nasceu em 1974, vive em Bombaim e foi responsável da revista Time e do Financial Times.

Costumo eu dizer que ninguém escreve boas novelas antes dos quarenta anos. Tigre Branco demonstra que estava equivocado. Trata-se, além disso, do seu primeiro livro. Pertence a um género inventado em Espanha: la picaresca. Mas uma picaresca rica em cargas de profundidade. Os rugidos e a garra deste tigre albino ajudam a entender porque é que a Índia dos nossos dias, com seus méritos e os seus defeitos, é o que é e porque era inevitável que assim fosse.

Um pequeno excerto? Seja. Transcrevo literalmente, de seguida, não sem antes avisar aos leitores que o que nesse texto se diz a propósito das castas, tão desapreciadas e mal entendidas no Ocidente, poderá ferir a sensibilidade dos judeo-cristãos politicamente correctos.

Eis: este país nos seus dias de grandeza, quando era a nação mais rica da Terra, era como um zoo. Um zoo limpo, ordenado e bem conservado. Cada um feliz e no seu sítio. Os ourives, aqui; os vaqueiros, ali; os senhores, acolá. O que se chama Halwai fabricava doces; o vaqueiro cuidava das vacas, e o intocável limpava as fezes. Os senhores eram amáveis com os seus servos. As mulheres cobriam a cabeça com um véu e baixavam os olhos quando falavam com um estranho. E então, graças a todos estes políticos de Deli, no dia 15 de Agosto de 1947, ou seja, no dia em que os britânicos se foram, todas as jaulas ficaram abertas. Os animais começaram a atacar-se e a destroçar-se uns aos outros e a lei da selva substituiu a lei do zoo. Os mais ferozes, os mais famintos, comeram os restantes e começaram a encher a barriga. Isto era a única coisa que contava agora: o tamanho da barriga. Não importava se eras mulher, muçulmano ou intocável: qualquer um com uma boa pança podia progredir. O pai de meu pai era um Halwai autêntico, um fabricante de doces. Mas quando ele herdou a sua loja, um membro de outra casta roubou-a com ajuda da polícia. O meu pai não tinha uma barriga para defender-se. Por isso foi desalojado até ao fundo do lodo, até ao nível de um condutor de rickshaw. Por isso me arrebataram meu destino de gordinho sorridente de pele cremosa. Em resumo: nos velhos tempos havia na Índia um milhar de castas e de destinos. Hoje em dia só há duas castas: a dos homens com grandes barrigas e a dos homens sem barriga. E só dois destinos: comer ou ser comido.

Quem nasceu ou viveu na Índia (ou pelo menos a percorreu a fundo, como Javier Moro e eu) sabe que Aravind Adiga, doa a quem doer, tem razão.

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