
Por outro lado, no que se refere particularmente a uma ordem social que tinha o seu centro num soberano, até ao Sacro Império Romano subsiste o principio – já defendido por Celso contra o dualismo do cristianismo das origens – de que os súbditos através da sua fidelidade ao seu príncipe podem demonstrar a sua fidelidade a Deus. É uma antiga concepção indo-europeia a do súbdito como um ser que está ligado por um compromisso sagrado e livre à pessoa do soberano; esta
fides ou devoção pessoal foi levada, no mundo tradicional, para além dos limites políticos e individuais, a ponto de atingir por vezes o valor de uma via de libertação. «Os sujeitos – salienta por exemplo Cumont a propósito do Irão – consagravam aos seus reis divinizados não só as suas acções e as palavras, mas também os seus próprios pensamentos. O seu dever era uma dedicação total da sua personalidade àqueles monarcas igualados aos deuses. A
militia sagrada dos Mistérios é apenas esta moral cívica considerada do ponto de vista religioso. 0 lealismo confundia-se assim com a fé.» A isto deve-se portanto acrescentar que nas formas mais nítidas e luminosas da Tradição se reconhecia igualmente a este lealismo a virtude de produzir os mesmos frutos que a fé promete. Ainda há pouco tempo se viu, no Japão, o general Nogi, o vencedor de Port Arthur, matar-se com a mulher, à morte do seu imperador, para o seguir nos mesmos caminhos do além-túmulo.
Com tudo isto esclarece-se em todos os aspectos o motivo por que dizemos que o segundo eixo de toda a organização tradicional é – além do rito e da existência de uma elite, não só humana, que representa a transcendência – a
fidelidade. É esta a força que, tal como um magnetismo, estabelece os contactos, cria uma atmosfera psíquica, propicia as comunicações, estabiliza as estruturas e determina um sistema de coordenação e de gravitação entre os indivíduos isolados e entre estes e o centro. Quando começa a faltar este fluído, que em última análise tem a sua origem na liberdade e na espontaneidade espiritual da personalidade, o organismo tradicional perde a sua elementar força de coesão, fecham-se caminhos, os sentidos mais subtis atrofiam-se, as partes dissociam-se e atomizam-se – o que tem por consequência a imediata retirada das forças do alto, que deixam ir os homens para onde quiserem, segundo o destino criado pelas suas acções e que nenhuma influência superior poderá já modificar. É somente este o mistério da decadência.
- Revolta contra o Mundo Moderno, p. 147
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