A Montanha e a Espiritualidade
Por um lado, há pessoas que identificam o “espírito” com a erudição adquirida em bibliotecas e nas salas de aula das universidades, ou com os jogos intelectuais dos filósofos, ou com um esteticismo literário ou pseudo-místico. Por outro lado, as novas gerações transformaram a competição atlética numa religião e parecem incapazes de conceber o que quer que seja para além da excitação das sessões de treino, competições e proezas físicas; elas realmente tornaram as conquistas desportivas num fim em si mesmo em vez de serem um meio para um fim mais elevado.
Algumas pessoas consideram esta oposição de estilos de vida como uma espécie de dilema.
Na realidade, no chamado tipo académico, frequentemente encontramos uma aversão inata por qualquer tipo de disciplina física; e do mesmo modo, em muitos praticantes de desportos, o sentido da força física alimenta o desprezo por aqueles que nas suas “torres de marfim” se limitam aos livros e às guerras de palavras que eles consideram inofensivas.
Estes dois estilos de vida devem ser considerados como mal orientados e como frutos da decadência moderna por serem ambos estranhos à visão heróica do espírito que constituiu o eixo das
melhores tradições clássicas do Ocidente que, no contexto da actual renovação da Itália, tem sido evocado com sucesso.
Muito frequentemente as pessoas esquecem que a espiritualidade é essencialmente um modo de vida e que a sua medida não consiste em noções, teorias e ideias que foram armazenadas na própria cabeça.
A espiritualidade é na realidade aquilo que de forma bem sucedida foi actualizado e traduzido numa sensação de superioridade que é experimentada internamente pela alma, e a nobre conduta, que se expressa no corpo.
A partir desta perspectiva é possível apreciar uma disciplina que, embora possa concernir às energias do corpo, não começa e acaba com elas mas que se tornará por sua vez no meio para o despertar de uma espiritualidade vivaz e orgânica.
Esta é a disciplina de um carácter interior superior.
No asceta, tal disciplina está presente numa forma negativa, por assim dizer; no herói está presente numa forma positiva e afirmativa, típica do mundo Ocidental.
A vitória interna contra as forças mais profundas que afloram na própria consciência durante momentos de tensão e perigo mortal é um triunfo num sentido externo, mas é também a marca de uma vitória do espírito sobre si próprio e de uma transfiguração interior.
Por esse motivo, na antiguidade, uma aura de sacralidade envolvia tanto o herói como o iniciado num movimento religioso ou esotérico, e figuras heróicas foram consideradas como símbolos de imortalidade.
Não obstante, na civilização moderna tudo tende a sufocar o sentido heróico da vida. Tudo está mais ou menos mecanizado, espiritualmente empobrecido, e reduzido a uma prudente e regulada associação de seres carentes e que perderam a sua auto-suficiência. O contacto entre os profundos e livres poderes do homem e o poder das coisas e da natureza foi cortado; a vida metropolitana tudo petrifica, sincopa toda a respiração, e contamina toda a “fonte” espiritual.
Como se isso não bastasse, as ideologias dos espíritos fracos nutrem desprezo por todos aqueles valores que noutros tempos foram os pilares fundamentais de organizações sociais mais
racionais e brilhantes. Nas sociedades antigas o topo da hierarquia era ocupado pela casta da aristocracia guerreira, ao passo que hoje em dia, nas utopias pacifistas-humanitárias (especialmente
nas anglo-saxãs), tenta-se retratar o herói como uma espécie de anacronismo, e como uma entidade perigosa e nociva que um dia será convenientemente abolida em nome do progresso.
Uma vez sufocada, a vontade heróica procurará outros escapes fora da rede dos interesses práticos, paixões e anseios, e essa rede torna-se cada vez mais apertada com o passar do tempo: a excitação que os desportos induzem nos nossos contemporâneos é apenas uma expressão disto.
Mas o heróico necessitará de se tornar novamente autoconsciente e mover-se para além dos limites do materialismo.
Na batalha contra as altitudes da montanha, a acção é finalmente livre de todas as máquinas e de tudo aquilo que distrai da directa e absoluta relação do homem com as coisas.
Próximo do céu e das profundas fendas de gelo – entre a calma e silenciosa grandiosidade dos cumes; nos impetuosos ventos e tempestades de neve; entre o brilho ofuscante dos glaciares; ou entre a feroz e impiedosa verticalidade das paredes rochosas – é possível despertar (através daquilo que a princípio pode parecer o mero emprego do corpo) o símbolo da superação, uma luz verdadeiramente espiritual e viril, e estabelecer contacto com as forças primordiais encerradas no interior dos membros do corpo. Deste modo a luta do alpinista será mais do que física e uma escalada bem sucedida poderá representar o cumprimento de algo que já não é meramente humano.
Nas mitologias antigas os picos das montanhas eram considerados os tronos dos deuses; isto é mito, mas é também a expressão alegórica de uma crença real que poderá sempre ressuscitar subespécie interioritatis.
Na vida – como tem sido assinalado, desde Nietzsche, por Simmel – os humanos têm um estranho e quase inacreditável poder para atingir certos cumes existenciais nos quais “viver mais” (mehr leben), ou a mais alta intensidade de vida, é transformado em “mais do que viver” (mehr als leben).
Nestes cumes, tal como o calor se transforma em luz, a vida torna-se livre dela própria; não no sentido da morte da individualidade ou de algum tipo de naufrágio místico, mas no sentido de uma afirmação transcendente da vida, na qual angústia, inquietação interminável, anseio e preocupação, a demanda pela fé religiosa, sustento e metas humanas, tudo cede o caminho a um estado dominante de calma.
Existe algo maior que a vida, dentro da própria vida, e não fora dela. Esta experiência heróica é boa e valorosa em si própria, enquanto que a vida comum é apenas guiada por interesses, coisas externas e convenções humanas. Uso a palavra experiência, porque este estado não está ligado a nenhum credo ou teoria em particular (que são sempre inúteis e relativas); pelo contrário apresenta-se da forma mais directa e indubitável, tal como as experiências de dor e prazer.
Esta profunda dimensão do espírito, que se percebe a si própria como infinita, auto-transcendente, e para além de toda a realidade manifesta, é novamente despertada e resplandece – mesmo que de forma não inteiramente consciente – na “loucura” daqueles que, em número crescente e sem nenhuma razão específica, ousam desafiar as altitudes da montanha, conduzidos pela vontade que prevalece sobre os medos, a exaustão e os instintos primitivos de prudência e auto-preservação.
Sentir-se abandonado aos próprios recursos, sem auxílio numa situação desesperada, envolto apenas nas próprias forças ou fraquezas, sem ninguém com quem contar além de si mesmo; a escalar de rocha em rocha, de apoio em apoio, de saliência em saliência, inexoravelmente, por horas e horas; com a sensação da altitude e do perigo iminente por toda a parte; e finalmente, após o duro teste de invocar toda a sua auto-disciplina, o sentimento de uma indescritível libertação, de uma solidão solar e do silêncio; o fim da luta, a subjugação dos medos, e a revelação de um horizonte ilimitado, por milhas e milhas, enquanto tudo o resto jaz abaixo – em tudo isto pode-se verdadeiramente encontrar a real possibilidade de purificação, de despertar, de renascimento de algo transcendente.
Não importa que o simbolismo heróico da montanha possa apenas ser experimentado inicialmente por poucos. Quando estes significados são devidamente focados, eles irão influenciar pessoas. Não há um verdadeiro alpinista que não seja capaz de experienciar a escalada, nem que seja apenas por uns poucos vislumbres ocasionais, como algo mais que um mero desporto. Da mesma forma, não há um verdadeiro alpinista que não ostente, nos olhos ou no rosto escurecido pelo reflexo do sol na neve, a marca de uma raça que se transformou para além da do povo das planícies.
Nesta base, devemos salvar as montanhas da contaminante invasão de turistas que tentam conquistá-las pela montagem dos seus “civilizados” acampamentos-base.
Não me refiro apenas a esses jovens de espírito fraco que levam para as populares estâncias de montanha os seus hábitos frívolos e mundanos da cidade (tais como as discotecas e as quadras de ténis), e que de maneira snobe exibem o seu novo equipamento colorido, comprado unicamente para usar nalguma inofensiva caminhada pelos bosques. Refiro-me também àqueles que maculam locais silenciosos e incontaminados com materialismo e trivialidade, nomeadamente com um espírito competitivo e a mania pelo que é difícil e inusual, apenas com o objectivo de bater novos recordes.
A montanha requer pureza e simplicidade; requer ascetismo.
Oh céu acima de mim! Céu claro e profundo! Abismo de luz!
Ao contemplar-te estremeço de divinos desejos!
Elevar-me à tua altura: eis a minha profundidade! Cobrir-me com a tua pureza: eis a minha inocência!
(...) E quando eu caminhava só, de que tinha a minha alma fome durante as noites e nos caminhos do erro?
E quando eu escalava montes, a quem procurava nos píncaros senão a ti?
E todas as minhas viagens e todas minhas escaladas não passavam de um expediente e recurso da inércia.
O que a minha vontade toda quer é voar, voar para ti!
Estas são palavras que Friedrich Nietzsche, o filósofo defensor da vontade de poder, escreveu nas montanhas isoladas de Engadine.
Para algumas pessoas estas palavras poderão não passar de efusões líricas.Para outras elas podem conter tanto o sentido íntimo da atitude espiritual heróica, o espírito do que é acção, como da disciplina do auto-controlo implacável. O templo deste espírito é a majestade primordial dos cumes, os glaciares, as fendas e abismos de gelo, e o céu azul sem limites.
Neste contexto os cumes montanhosos e os cumes espirituais convergem numa simples e ainda assim poderosa realidade.
Julius Evola
Artigo publicado no Boletim Evoliano nr 1 - 2ª série
Pode ser descarregado aqui
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