Texto Evocativo - Solstício de Inverno 2019

D. Duarte de Almeida:
o exemplo do herói solar entre o nevoeiro de Toro

            Um mundo individualista como o de hoje, mentalmente colonizado pelas “auto-determinações”, pautado pela comodidade e frivolidade do consumismo, parece esquecer-se das virtudes edificantes análogas aos princípios da heroicidade. A inversão dos valores e dos princípios, a corrupção do corpo, alma e espírito, pesam sobre o Homem, condenando-o a tornar-se num pálido reflexo dos seus ancestrais. O herói torna-se traidor, o traidor torna-se herói. O santo torna-se assassino, o assassino torna-se santo. Um santo patrono dos assassinos. 
Quando confrontados com a História e até com os mitos que a ela subjazem, os nossos contemporâneos sentem-se esmagados pelo peso do exemplo, envergonhados pela própria queda ou precipitação na decadência. É, precisamente, essa vergonha que leva alguns à glorificação dos princípios motores da degenerescência bem como à guerra contra os valores fundacionais da nossa tradição e civilização, ou seja, os reis do nigredo procuram tornar-se “reis do mundo”. Trata-se de um nivelamento por baixo, com recurso ao paradigma moderno e aos dogmas do seu falso deus da igualdade.
             Habitualmente, perante a proximidade ameaçadora da morte, o instinto de sobrevivência física sobrepõe-se à razão e a outras matérias do espírito. Uma reacção natural do ser humano quando confrontado com a ameaça do fim. Por esse motivo são tão admiráveis os esforços exemplares de todos aqueles que afrontam a sua efémera natureza e existência, em glorificação ou até sacrifício em honra de um bem comum.
            Guerra Junqueiro dividia os homens superiores em três planos: herói, sábio e santo. Três categorias dialogantes que permitem forjar uma aura mitificante em torno das grandes personalidades que encarnam os princípios basilares das figuras ou agentes arquetípicos do inconsciente colectivo das comunidades humanas. Para além das suas implicações nos domínios do Sagrado e do espírito, a cosmologia solar desempenha aqui um papel simbólico e definitivo.
            O Solstício de Inverno marca, contrariamente ao de Verão, um triunfo da Luz sobre as trevas. A inversão da roda solar resgata-nos dos domínios saturninos da alma humana. Um facto ao qual nenhuma tradição religiosa fica indiferente, seja ela natural, ou revelada. Nietzsche associaria este momento com o regresso de Apolo; Jung com o triunfo do Cristo ariano. Em resumo, o triunfo do Sol invencível.
            A sagrada linhagem da monarquia portuguesa incorpora todos estes pressupostos, em particular as dinastias Afonsina, Avis e Avis-Beja. Aos monarcas, infantes, nobres e infanções, juntam-se os homens comuns que, lutando no anonimato da sua existência, tombaram no campo de batalha, sagrando a terra com o seu sangue quente. Desde o nosso pai-fundador ao lendário Martim Moniz, de D. Nuno Álvares Pereira ao Infante Santo, ou de D. Francisco de Almeida a Afonso de Albuquerque, indo desembocar no sacrifício sacro-teleológico do Desejado, muitas foram as figuras que, irrompendo das trevas, desafiaram a vida e a morte em nome de algo maior e Sagrado: a Fé em Deus, o dever para com a Pátria e o amor para com o Povo e suas gentes. 
D. Duarte de Almeida, alferes-mor de D. Afonso V durante a Batalha de Toro, foi uma dessas muitas figuras solares que integram a nossa História e cujos feitos, ou exemplos, os imortalizam, tornando-os mito e símbolo de uma espiritualidade pátria. Nascido em Vila Pouca de Aguiar, em Trás-os-Montes, em inícios do século XV, fez parte de uma família que há muito servia a coroa Portuguesa e os interesses militares de Portugal. A sua educação terá, por certo, pesado nos momentos altos de uma vida que encontrou o seu corolário no dia 1 de Março de 1476.
Nessa data, travou-se em Castela uma das mais inusitadas batalhas entre portugueses e castelhanos. D. Afonso V, protegendo os interesses da sua sobrinha, protagonizou um dos vários episódios em que a coroa portuguesa aspirou ao sempre tentador domínio sobre a união das coroas ibéricas.
Era um dia de nevoeiro e combatia-se de forma aguerrida. Até o Infante D. João, futuro D. João II, lutava, corajosamente, entre os seus homens. Um momento de desorientação resultante da reduzida visibilidade no campo de batalha levou a que um ataque concertado dos castelhanos deixasse o pavilhão real português exposto. Perante a oportunidade de derrubar o estandarte português, confiado a D. Duarte de Almeida, os espanhóis concentraram todos os seus esforços no ataque a esse cavaleiro. Rodeando-o, procuraram derrubá-lo para lhe tomarem a relíquia sagrada que protegia. Envolto pelas lanças inimigas, defendeu a bandeira portuguesa com heróica bravura. Um golpe inimigo cortou-lhe a mão direita. Indiferente à dor, segurou estoicamente o sagrado estandarte com a mão esquerda que acabaram também por lhe decepar. Determinado em proteger a bandeira que jurou defender com a sua vida, honra e fiel lealdade, procurou mantê-la erguida, segurando-a entre os braços, com a ajuda dos seus dentes.
Resistindo de forma heróica contra as investidas castelhanas, D. Duarte de Almeida acabou por cair por terra, inanimado. Contudo, não seria por sua culpa que a batalha se traduziria numa derrota. Entre as fileiras portuguesas outros homens de igual bravura e com o mesmo espírito de abnegação tomaram o lugar do camarada caído. Gonçalo Pires foi outro desses portugueses que, nesse dia, conquistou o respeito de todos no campo de batalha, após conseguir reconquistar o estandarte português tomado pelos castelhanos. Portugal retomou as rédeas da contenda e voltou a superiorizar-se perante os exércitos antagonistas. O desfecho da Batalha de Toro continua hoje a ser um mistério entre os estudiosos da História Militar. Porém, ditou o destino que os feitos e conquistas desse dia estivessem para lá das glórias alcançadas em honra de Marte.          
Conforme defenderam Thomas Carlyle e Álvaro Ribeiro, admirar os exemplos excelsos e superiores revela uma inteligência e boa-formação moral. Talvez por esse mesmíssimo princípio ou, simplesmente, marcados pelos valores do seu tempo, os inimigos castelhanos souberam admirar a grandeza do gesto heróico de D. Duarte de Almeida. O seu corpo moribundo foi recolhido pelos espanhóis no campo de batalha e transportado para junto das suas hostes onde foi tratado e cuidado com o respeito e a compaixão que todos os heróis e justos combatentes merecem. Assim ensinam os manuais e códigos de cavalaria europeus, cuja principal lição está longe de se esgotar na prática da arte da guerra.
O seu sacrifício, apesar de não lhe haver ceifado a vida, expropriou-o. D. Duarte de Almeida, o homem de trabalho e de guerra perdera ambas as mãos na defesa do sagrado estandarte. O cognome “O Decepado” talvez seja, a par de “O Lavrador” atribuído a D. Dinis, um dos mais injustos e redutores da História de Portugal. Não obstante, homens da sua estirpe não esperam honrarias e muito menos se compadecem com os nomes aos quais ficarão para sempre associados nos anais da História. Afinal, os seus feitos de armas e os princípios que os moveram, cobrem estes homens de uma glória eterna, conduzindo-os até ao altar de Pátria onde, perenemente, custodiarão o fogo sagrado de Portugal.
A armadura de D. Duarte de Almeida encontra-se, ainda hoje, exposta no interior da Catedral de Toledo, como uma relíquia de um combatente cujo exemplo o fez sair dos domínios humanos da História, inscrevendo-o na tradição solar da mitografia portuguesa e europeia. D. Duarte de Almeida: Presente!      

José Almeida
Porto, 21 de Dezembro de 2019

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