Cavalgar o Tigre (Introdução)
1. Orientação. O mundo moderno e os homens da tradição
Nesta obra propomo-nos estudar alguns dos aspectos da época actual, precisamente aqueles aspectos que a converteram essencialmente numa época de dissolução e, ao mesmo tempo, abordar o problema do comportamento e das formas de existência que, numa situação como esta, interessam adoptar a umdeterminado tipo de homem.
Esta última restrição nunca deverá ser perdida de vista. O que se vai ler não afecta a totalidade dos nossos contemporâneos, mas unicamente ao homem, ainda que comprometido com o mundo actual, inclusive onde a vida moderna alcançou o ponto mais amargo, problemático e paradoxal, não lhe pertence interiormente, no entanto não contempla a possibilidade de lhe ceder, e sente-se, por sua essência, de uma raça diferente da maior parte dos outros homens.
O lugar natural dum homem assim, numa terra onde não seria um estranho é no mundo da Tradição: esta expressão tem aqui um carácter particular que já utilizamos em outras ocasiões próximo das categorias utilizadas por René Guenon em sua análise crítica do mundo moderno. Segundo esta concepção particular, uma civilização ou uma sociedade são “tradicionais”, quando estão regidas por princípios que transcendem o que há de mais humano e individual, quando todas as suas formas lhe vêm do alto e quando estão inteiramente orientadas para cima. Mas, apesar da diversidade das suas formas históricas, o mundo da Tradição caracteriza-se por uma identidade e constância essenciais. Em outros livros tentamos precisar quais eram estes valores e as categorias fundamentais e imutáveis que constituem a base da civilização, sociedade ou organização da existência, que se possam qualificar de “normais” no sentido superior de um significado justo.
Tudo o que acabou por prevalecer no mundo moderno, representa a exacta antítese do tipo tradicional de civilização. A experiência mostra, de uma forma cada vez mais evidente, como partindo de valores da Tradição (admitindo que haja alguém, hoje em dia, que saiba reconhecê-los e assumi-los), é muito provável que se possa, mediante acções e reacções eficazes, modificar de uma forma apreciável o actual estado de coisas. Não parece possível que perante os últimos transtornos mundiais, nem as nações, nem as instituições, nem tão pouco a grande maioria dos indivíduos e as condições gerais da sociedade, assim como as ideias, os interesses e as forças predominantes desta época, possam servir de alavanca para uma acção deste género.
Sem dúvida, existem alguns homens que permanecem por assim dizer, de pé entre as ruínas, no meio desta dissolução e que, mais ou menos conscientemente pertencem a este outro mundo. Uma pequena tropa que parece disposta a combater mesmo em posições perdidas. Quando não se submetem, quando se negam a compromissos ou não se deixam seduzir por aquilo que lhes poderia assegurar algum êxito. Nesse caso, seu testemunho é válido; outros, pelo contrário isolam-se completamente, o que exige firmeza interior e condições materiais privilegiadas, hoje em dia cada vez mais raras. Em todo o caso é a segunda das possibilidades. Por fim é preciso mencionar, os escassos espíritos que no campo intelectual podem mesmo afirmar “valores tradicionais”, independentemente de todo o fim imediato, com o objectivo de desenvolver uma acção de “presença”, uma acção certamente útil para impedir que a conjuntura actual introduza um obscurecimento completo do horizonte, não só sobre o plano material, mas também no plano das ideias, e não permita distinguir nenhuma outra escala de valores que aquela que lhes é própria. Graças a estes homens, as “distâncias” podem ser mantidas: outras dimensões possíveis, outros significados de vida podem ser indicados a quem é capaz de distanciar-se, de não ficar somente a olhar as coisas próximas ou o presente.
Infelizmente isto não resolve o problema de ordem pessoal e prático que se coloca, não naqueles que têm a possibilidade de se afastar materialmente, mas naqueles que não podem ou não querem cortar a ligação com a vida actual e que, por isto mesmo, devem resolver o problema do comportamento a adoptar na vida, nem que seja só no plano das reacções humanas mais elementares.
Essencialmente pensando neste tipo de homens se escreveu a presente obra, e é a este homem que se aplica esta máxima de um grande “precursor”: “O deserto cresce. Desgraçado daquele que esconde desertos dentro de si.” Não encontra com efeito nenhum apoio no exterior. As organizações e instituições que numa civilização tradicional lhe haviam servido de ponto de apoio e permitido realizar-se integramente, organizar de maneira clara e precisa a sua própria existência, defender e aplicar no seu meio como em si mesmo, os valores essenciais que reconhecia interiormente, estas organizações e instituições não existem hoje em dia. Não convém pois, continuar a apresentar linhas de acção que, adequadas e legais em toda a civilização normal e tradicional não o são numa civilização anormal, num meio sócio, psíquico, intelectual e material completamente diferente, num clima de dissolução geral, num sistema de desordens constantes e, em todo o caso, sem uma legitimidade superior. Disto tudo resulta uma série de problemas específicos que nos propomos estudar em seguida.
Um ponto que deve ser esclarecido antes de tudo é a atitude a adoptar no que diz respeito às “sobrevivências”. Principalmente na Europa Ocidental subsistem hábitos, instituições e costumes do mundo de ontem, quer dizer, do mundo burguês, que resistem com muita persistência. Hoje em dia, quando se fala de crise, no fundo é da crise do mundo burguês do que se trata: são as bases da civilização e sociedade burguesa que sofrem esta crise, o objecto desta dissolução. Não é o que consideramos o mundo da Tradição. O mundo que se desintegra social, política e culturalmente, é aquele que se formou a partir da Revolução do Terceiro Estado e da primeira revolução industrial, mesmo se misturados com alguns vestígios de uma ordem mais antiga.
Quais são as relações que podem existir entre este mundo e o tipo de homem que nos interessa? Esta questão é essencial, pois na resposta que se lhe der, depende evidentemente o sentido a ser atribuído aos problemas de crise e dissolução, cada vez mais visíveis em nossos dias, e a atitude a adoptar, tanto a seu respeito, como em respeito ao que não foi ainda completamente minado ou destruído por eles.
A resposta não pode ser mais negativa. Nosso tipo de homem não tem nada a ver com o mundo burguês. Deve considerar tudo que é burguês como algo recente e anti-tradicional, nascido de processos negativos e destrutivos. Percebe-se muitas vezes, que os fenómenos actuais de crise são uma espécie de Némesis, o da volta do pêndulo: - são precisamente as forças, que no seu tempo, foram postas em marcha contra a antiga civilização tradicional europeia (não vamos entrar em detalhes), que se voltaram contra quem as havia evocado, destruindo-as uma a uma e levando mais longe, até uma fase ulterior mais avançada o processo geral de desintegração. Isto vê-se muito claramente no plano político-social, por exemplo nas relações evidentes que existem entre a revolução burguesa do Terceiro Estado e os movimentos socialistas e marxistas que seguiram, entre a democracia e o liberalismo por um lado e o socialismo do outro. Os primeiros serviram simplesmente para abrir a via aos segundos e estes, depois de os haverem deixado cumprir a sua função, não pensam senão em destruí-los.
Ocorrendo isto, há uma conclusão que é preciso rejeitar energicamente: a que consistiria em apoiar-se sobre o que sobrevive do mundo burguês, em defendê-lo e torná-lo como apoio para lutar contra as correntes de dissolução e subversão mais violentas, depois de ter tentado animar ou fortalecer estes vestígios com a ajuda de alguns valores mais altos e mais tradicionais.
Perante isto, a situação geral acentua-se cada vez mais, desde os acontecimentos cruciais que foram as duas grandes guerras mundiais e suas repercussões, adoptar esta atitude seria criar ilusões sobre as possibilidades práticas que existem. As transformações já ocorridas são demasiado profundas para serem reversíveis. As forças que estão em estado livre ou em vias de sê-lo, não são susceptíveis de serem reintegradas ao ponto das estruturas do mundo de ontem. É precisamente o facto das tentativas de reacção não se ligarem mais do que a estas estruturas desprovidas de toda a legitimidade superior, o que deu vigor e capacidade de se implantar às forcas de subversão. Por outro lado, tal via conduziria a um equívoco tão inadmissível sobre o plano ideal, como perigoso sobre o plano táctico. Como temos dito, os valores tradicionais – aqueles que nós chamamos “valores tradicionais” – não são os valores burgueses, mas sim a sua antítese. Reconhecer um valor a estas sobrevivências, associá-las de uma forma ou de outra aos valores tradicionais, utilizá-las para o fim que acabamos de indicar, levaria pois, quer a testemunhar uma pobre compreensão destes mesmos valores, quer a diminuí-los e a descer a uma forma de compromisso, ao mesmo tempo desprezível e perigoso. Perigoso pois, é o facto de ligar de uma forma ou de outra, as ideias tradicionais a formas residuais de civilização burguesa que iria expor estas, em mais de um aspecto legítimo e necessário, a sofrer o ataque inevitável, actualmente empreendido contra esta civilização.
É pois, para a solução oposta que nos devemos encaminhar mesmo se isto torna as coisas difíceis e comporta outro tipo de risco. É positivo cortar todos os laços com o que está destinado a desaparecer, mais ou menos em breve prazo. O problema será então manter uma linha de direcção geral sem apoiar-se em nenhuma forma dada ou transmitida, incluindo as do passado, que são autenticamente tradicionais mas que já pertencem à história. A continuidade não poderá ser mantida mais sobre o plano existencial, ou mais precisamente debaixo de uma forma de orientação íntima do ser, que deveria ir a par, com a maior liberdade individual virada para o exterior. Tal como se exporá de maneira detalhada a seguir, o apoio que a tradição poderá trazer não deve vir de esquemas regulares e reconhecidos de uma civilização nascida antigamente, mas sim, e antes de tudo, dos princípios doutrinais que ela continha, em estado pré-formal, ao mesmo tempo superior e anterior às formas particulares que se desenrolaram no curso da história, doutrina que no passado não pertencia às massas, mas que tinha o carácter de uma “doutrina interna”.
Além disso, existindo a impossibilidade de actuar de maneira positiva no sentido de um regresso ao sistema normal e tradicional, existindo a impossibilidade de ordenar organicamente e com coerência a sua própria existência no ambiente da sociedade, da cultura e dos costumes modernos, fica por saber em que medida se pode aceitar plenamente um estado de dissolução sem se ser influenciado interiormente por ele. Convém examinar igualmente, aquilo que na fase actual – em última análise, fase de transição – pode ser escolhido, separado do resto e assumido como forma livre de um comportamento, que exteriormente não seja anacrónico mas permita também identificar-se com o que há de mais avançado no pensamento e costumes contemporâneos, ainda que permanecendo interiormente determinado e orientado por um espírito completamente diferente.
A fórmula “ir, não onde se defende mas sim onde se ataca”, proposta por alguns, poderá ser adoptada pelo grupo dos homens diferenciados, descendentes da Tradição, aqueles que vamos tratar aqui. Isto significa que pode ser bom contribuir para derrubar o que vacila e pertence ao passado, ao mundo de ontem, em vez de assinalá-lo e de prolongar a sua existência. É uma táctica possível, cuja essência é impedir que a crise final seja obra de forças contrárias cuja acção se deverá entretanto aguentar. O risco de tal atitude é evidente: não se sabe quem terá a última palavra. Não há nada na época actual, assim mesmo, que não seja perigoso. Para quem permanece em pé, é talvez a única vantagem que tal atitude representa. Resumindo convém reter as seguintes ideias fundamentais:
- É preciso realçar o sentido de crise e o processo de dissolução que muitos deploram hoje em dia, e mostrar que o objectivo principal e real deste processo de destruição é a civilização e a sociedade burguesa, as quais, na escala dos valores tradicionais, tomavam o sentido de uma primeira negação do mundo que as havia precedido e que lhes era superior. Continuando, a crise do mundo moderno poderá eventualmente representar, segundo uma expressão hegeliana, uma “negação da negação”, e por consequência um fenómeno positivo. A alternativa é a seguinte: ou a negação da negação conduz ao nada – ao nada que brota das formas múltiplas do caos, da dispersão e do caos que caracterizam as numerosas tendências das últimas gerações; ou esta outra negação que apenas se esconde por detrás do sistema organizado da civilização material – ou esta negação vai criar para os homens que nos interessam aqui, um novo espaço livre, que eventualmente poderá representar a condição prévia de uma acção formadora posterior.
2. Fim de um ciclo. “Cavalgar o tigre”
Esta última ideia refere-se a uma perspectiva que, rigorosamente falando, não é a deste texto, pois diz respeito, não ao comportamento interior e pessoal, mas sim ao colectivo, não à realidade de hoje, mas sim a um futuro que não é possível hipotecar e do qual é essencial que não se faça depender de nenhuma forma o próprio comportamento.
Trata-se da perspectiva já mencionada anteriormente, segundo a qual a nossa época poderia ser, em última análise, uma época de transição. Vamos dedicar algumas palavras a este tema antes de abordarmos o problema principal que nos interessa, referindo-nos à doutrina de ciclos da vida e à ideia de que a época actual, assim como todos os fenómenos que a caracterizam, correspondem à fase terminal de um ciclo.
A fórmula que escolhemos como título deste livro “Cavalgar o Tigre”, pode servir de transição entre o que temos dito até aqui e a doutrina em questão. Esta fórmula do extremo oriente, significa que se uma pessoa consegue cavalgar um tigre, se o impede de nos atacar e se para além disso, se não cai, se permanece agarrado, pode acontecer que o consiga dominar; recordemos, para quem se interessa, que um tema análogo se encontra em muitas escolas de sabedoria tradicional, como o Zen japonês (as diversas situações do homem e do touro), e que a antiguidade clássica desenvolveu temas similares (as provas de Mitra, que se deixa arrastar por um touro furioso, sem o soltar, até que o animal se detém; então Mitra o mata).
Este simbolismo, aplica-se em vários planos. Pode referir-se a uma linha de conduta a seguir no plano interior, mas também a uma atitude que convém adoptar quando as situações críticas se manifestam no plano histórico e colectivo. Neste último caso, o que nos interessa é o vínculo que existe entre este símbolo e aquilo que ensina a doutrina geral da história, em particular sobre a sucessão das “quatro idades”. Esta doutrina, tal como tivemos oportunidade de expor em outras ocasiões, revestiu-se de aspectos idênticos tanto no Oriente como no Ocidente.
No mundo clássico fala-se do retrocesso progressivo da humanidade desde a Idade do Ouro, até ao que Hesíodo chama a Idade de Ferro. Nos ensinamentos hindus correspondentes, a idade final é chamada de Kali Yuga (Idade Sombra) e expressa o carácter essencial que lhe é próprio: precisamente num clima de dissolução, a passagem ao estado livre das forças individuais e colectivas, materiais, físicas e espirituais, que anteriormente tinham permanecido reprimidas de diversas formas, por uma lei proveniente do alto e por influências de ordem superior. Os textos tântricos deram uma imagem sugestiva desta situação, dizendo que correspondem ao “despertar” de uma divindade feminina – Kali – símbolo da força elementar e primordial do mundo e da vida, mas que se apresenta debaixo de aspectos infernais, como a deusa do sexo e dos ritos orgiásticos. “Adormecida” até agora – quer dizer, latente nestes últimos aspectos – estaria durante a “Idade Sombria” completamente desperta e em acção.
Tudo parece indicar que é precisamente a situação que se desenrola nestes últimos tempos e que teve seu epicentro na civilização e sociedades ocidentais, a que se estendeu rapidamente ao mundo inteiro; o facto da época actual se encontrar debaixo do signo do Aquário, poderá encontrar, por outro lado, uma interpretação normal em alusão às águas, nas quais tudo permanece em estado fluido e informe. Previsões formuladas à muitos séculos atrás – pois as ideias aqui expostas remontam a uma época longínqua – hoje se revelam singularmente actuais. Este contexto refere-se, como já dissemos, aos pontos de vista expostos, no que se apresenta de forma análoga o problema da atitude a adoptar durante a última idade, atitude aqui associada ao símbolo do tigre que se cavalga.
Com efeito, os textos que falam de Kali-Yuga e da Idade Sombria, também proclamam que as normas de vida válidas para as épocas em que as forças divinas permaneciam de certo modo vivas e actuantes, deviam ser consideradas como obsoletas durante a última idade. Esta veria aparecer um tipo de homem essencialmente diferente, cada vez mais incapaz de seguir os antigos preceitos, em razão da diferença do meio histórico, quer dizer planetário; estes preceitos, mesmo se fossem seguidos já não trariam os mesmos frutos. É por isto que se propõem agora regras diferentes e pelo que se aboliu a lei do segredo que cobria anteriormente algumas verdades, ou determinada ética e determinados ritos particulares, por causa do seu carácter perigoso e da antítese com as formas de uma existência normal, regulamentada pela Tradição Sagrada. O significado desta convergência de pontos de vista não escapa a ninguém. Estas ideias longe de terem, neste como em outros pontos, um carácter pessoal e contingente, referem-se essencialmente a perspectivas que o mundo da Tradição já havia conhecido quando foram previstas e estudadas situações gerais de um carácter irregular.
Examinemos agora como se aplica ao mundo exterior, ao meio em geral, o princípio consistente de cavalgar o tigre. Pode então significar que quando uma civilização atinge o seu auge é difícil alcançar um resultado qualquer resistindo, opondo-se directamente às forças em movimento. A corrente é muito forte e qualquer um correria o risco de ver-se arrastado. O essencial é não se deixar impressionar por aquilo que parece todo-poderoso, nem tão pouco pelo triunfo aparente das forças da época. Privadas de ligação com qualquer princípio superior, na realidade estas forças têm um campo de acção limitado.
Não faz falta pois auto-sugestionar-se pelo presente, nem pelo que nos rodeia, sem pressentir também as condições susceptíveis de se apresentarem mais tarde. A regra a seguir consiste em deixar livre o curso das forças e dos processos da época, permanecendo firmes e dispostos a intervir “quando o tigre, que não pode atirar-se sobre quem o cavalga estiver fatigado de correr”. Interpretado de uma forma particular o preceito cristão da não resistência ao mal, poderia ter um sentido análogo. Abandona-se a acção directa e cada um retira-se para posições mais reservadas.
As perspectivas que regem a doutrina das leis cíclicas estão aqui implícitas: quando um ciclo termina, outro começa, e o ponto culminante do processo é também aquele onde se produz o encaminhamento na direcção oposta. O problema da continuidade entre um ciclo e outro permanece no entanto exposto. Para recuperar uma imagem de Hofmansthal, a solução positiva seria a do reencontro entre os que souberam velar durante a longa noite e os que, talvez apareçam no novo amanhecer. Infelizmente não se pode estar seguro deste desenlace: não se pode prever com certeza de que forma nem em que contexto poderá manifestar-se uma certa continuidade entre o ciclo que chega ao seu fim e o ciclo seguinte. Convém pois conferir à linha de conduta, válida na época actual, daquela que antes havíamos falado, um carácter autónomo e um valor permanente e individual. Nós entendemos aqui, que a atracção exercida por perspectivas positivas, mais ou menos num breve plano não devem ter um papel importante. Inclusive poderiam estar ausentes por completo até ao fim do ciclo e as possibilidades apresentadas por um novo movimento, para além de um certo ponto podem dizer respeito a outros homens que, como nós próprios, se tenham mantido igualmente firmes, sem esperar nenhum resultado directo nem nenhuma mudança exterior.
Antes de abandonar o domínio introdutivo para abordar nosso tema principal, será talvez útil mencionar um outro ponto particular que está igualmente relacionado com as leis cíclicas. Trata-se das relações entre a civilização ocidental e as outras civilizações, particularmente a civilização oriental.
Entre aqueles que reconheceram a crise do mundo moderno e que renunciaram também a considerar a civilização moderna como a civilização por excelência, o apogeu e a bitola para qualquer outra civilização, há quem tenha voltado o seu olhar para o Oriente, onde subsiste uma orientação tradicional e espiritual da vida que, desde à longo tempo, deixou de servir ao Ocidente como base de organização efectiva dos diferentes domínios da existência. Inclusive tem-se perguntado se não se pode encontrar no Oriente pontos de referência úteis para a reintegração do Ocidente. René Guenon foi o defensor mais empenhado desta tendência.
Mas é preciso ver claramente sobre que aspectos se situa o problema, se se trata de simples doutrinas e de contactos “intelectuais” esta procura é legítima. Mas, convém assinalar, pelo menos em parte, que podemos encontrar exemplos e referências claras em nosso próprio passado ocidental e tradicional, sem necessidade de buscar numa civilização não europeia. Em todo o caso pouco se ganharia. Trata-se de um intercâmbio de alto nível entre elementos isolados que cultivam sistemas metafísicos. Se, pelo contrário, se aspira a influências reais com uma repercussão importante sobre a existência, não se pode ter ilusões. O Oriente segue agora o caminho que nós demoramos vários séculos a percorrer.
O “mito do Oriente” fora do círculo dos sábios e especialistas das disciplinas metafísicas é pois enganoso. “O deserto cresce”, não existe civilização que possa servir-nos de apoio, devemos enfrentar sozinhos nossos problemas. A única perspectiva, mas hipotética, que em contrapartida nos oferecem as leis cíclicas é esta: o processo decadente da “Idade Sombria” na sua fase final, começou entre nós; não está pois posto de parte que sejamos também nós os primeiros a superar o ponto zero, no momento em que outras civilizações, entradas mais tardiamente na mesma corrente, se encontrem, pelo contrário num estado similar ao nosso na actualidade, depois de ter abandonado – “superado” – e que oferecem ainda hoje os valores superiores e as formas de organização tradicionais susceptíveis de nos atrair. Resultaria pois que o Ocidente, invertendo os papéis, se encontraria numa situação para além do limite negativo e estaria qualificado para uma nova função de guia ou de chefe, muito diferente do que realizou no passado com a civilização tecno-industrial e material e que agora já debilitada teve como único resultado o nivelamento geral.
Quem sabe para alguns, estas breves indicações sobre perspectivas e problemas de ordem geral não tenham sido inúteis. Como tínhamos dito, voltaremos pois ao aspecto da vida pessoal que nos interessa: deste ponto de vista, definindo a orientação a dar a algumas experiências ou processos actuais com vista a extrair resultados diferentes dos que a maioria dos nossos contemporâneos consegue, importa estabelecer posições autónomas, independentes do que poderá ou não chegar a ocorrer no futuro.
Nesta obra propomo-nos estudar alguns dos aspectos da época actual, precisamente aqueles aspectos que a converteram essencialmente numa época de dissolução e, ao mesmo tempo, abordar o problema do comportamento e das formas de existência que, numa situação como esta, interessam adoptar a umdeterminado tipo de homem.
Esta última restrição nunca deverá ser perdida de vista. O que se vai ler não afecta a totalidade dos nossos contemporâneos, mas unicamente ao homem, ainda que comprometido com o mundo actual, inclusive onde a vida moderna alcançou o ponto mais amargo, problemático e paradoxal, não lhe pertence interiormente, no entanto não contempla a possibilidade de lhe ceder, e sente-se, por sua essência, de uma raça diferente da maior parte dos outros homens.
O lugar natural dum homem assim, numa terra onde não seria um estranho é no mundo da Tradição: esta expressão tem aqui um carácter particular que já utilizamos em outras ocasiões próximo das categorias utilizadas por René Guenon em sua análise crítica do mundo moderno. Segundo esta concepção particular, uma civilização ou uma sociedade são “tradicionais”, quando estão regidas por princípios que transcendem o que há de mais humano e individual, quando todas as suas formas lhe vêm do alto e quando estão inteiramente orientadas para cima. Mas, apesar da diversidade das suas formas históricas, o mundo da Tradição caracteriza-se por uma identidade e constância essenciais. Em outros livros tentamos precisar quais eram estes valores e as categorias fundamentais e imutáveis que constituem a base da civilização, sociedade ou organização da existência, que se possam qualificar de “normais” no sentido superior de um significado justo.
Tudo o que acabou por prevalecer no mundo moderno, representa a exacta antítese do tipo tradicional de civilização. A experiência mostra, de uma forma cada vez mais evidente, como partindo de valores da Tradição (admitindo que haja alguém, hoje em dia, que saiba reconhecê-los e assumi-los), é muito provável que se possa, mediante acções e reacções eficazes, modificar de uma forma apreciável o actual estado de coisas. Não parece possível que perante os últimos transtornos mundiais, nem as nações, nem as instituições, nem tão pouco a grande maioria dos indivíduos e as condições gerais da sociedade, assim como as ideias, os interesses e as forças predominantes desta época, possam servir de alavanca para uma acção deste género.
Sem dúvida, existem alguns homens que permanecem por assim dizer, de pé entre as ruínas, no meio desta dissolução e que, mais ou menos conscientemente pertencem a este outro mundo. Uma pequena tropa que parece disposta a combater mesmo em posições perdidas. Quando não se submetem, quando se negam a compromissos ou não se deixam seduzir por aquilo que lhes poderia assegurar algum êxito. Nesse caso, seu testemunho é válido; outros, pelo contrário isolam-se completamente, o que exige firmeza interior e condições materiais privilegiadas, hoje em dia cada vez mais raras. Em todo o caso é a segunda das possibilidades. Por fim é preciso mencionar, os escassos espíritos que no campo intelectual podem mesmo afirmar “valores tradicionais”, independentemente de todo o fim imediato, com o objectivo de desenvolver uma acção de “presença”, uma acção certamente útil para impedir que a conjuntura actual introduza um obscurecimento completo do horizonte, não só sobre o plano material, mas também no plano das ideias, e não permita distinguir nenhuma outra escala de valores que aquela que lhes é própria. Graças a estes homens, as “distâncias” podem ser mantidas: outras dimensões possíveis, outros significados de vida podem ser indicados a quem é capaz de distanciar-se, de não ficar somente a olhar as coisas próximas ou o presente.
Infelizmente isto não resolve o problema de ordem pessoal e prático que se coloca, não naqueles que têm a possibilidade de se afastar materialmente, mas naqueles que não podem ou não querem cortar a ligação com a vida actual e que, por isto mesmo, devem resolver o problema do comportamento a adoptar na vida, nem que seja só no plano das reacções humanas mais elementares.
Essencialmente pensando neste tipo de homens se escreveu a presente obra, e é a este homem que se aplica esta máxima de um grande “precursor”: “O deserto cresce. Desgraçado daquele que esconde desertos dentro de si.” Não encontra com efeito nenhum apoio no exterior. As organizações e instituições que numa civilização tradicional lhe haviam servido de ponto de apoio e permitido realizar-se integramente, organizar de maneira clara e precisa a sua própria existência, defender e aplicar no seu meio como em si mesmo, os valores essenciais que reconhecia interiormente, estas organizações e instituições não existem hoje em dia. Não convém pois, continuar a apresentar linhas de acção que, adequadas e legais em toda a civilização normal e tradicional não o são numa civilização anormal, num meio sócio, psíquico, intelectual e material completamente diferente, num clima de dissolução geral, num sistema de desordens constantes e, em todo o caso, sem uma legitimidade superior. Disto tudo resulta uma série de problemas específicos que nos propomos estudar em seguida.
Um ponto que deve ser esclarecido antes de tudo é a atitude a adoptar no que diz respeito às “sobrevivências”. Principalmente na Europa Ocidental subsistem hábitos, instituições e costumes do mundo de ontem, quer dizer, do mundo burguês, que resistem com muita persistência. Hoje em dia, quando se fala de crise, no fundo é da crise do mundo burguês do que se trata: são as bases da civilização e sociedade burguesa que sofrem esta crise, o objecto desta dissolução. Não é o que consideramos o mundo da Tradição. O mundo que se desintegra social, política e culturalmente, é aquele que se formou a partir da Revolução do Terceiro Estado e da primeira revolução industrial, mesmo se misturados com alguns vestígios de uma ordem mais antiga.
Quais são as relações que podem existir entre este mundo e o tipo de homem que nos interessa? Esta questão é essencial, pois na resposta que se lhe der, depende evidentemente o sentido a ser atribuído aos problemas de crise e dissolução, cada vez mais visíveis em nossos dias, e a atitude a adoptar, tanto a seu respeito, como em respeito ao que não foi ainda completamente minado ou destruído por eles.
A resposta não pode ser mais negativa. Nosso tipo de homem não tem nada a ver com o mundo burguês. Deve considerar tudo que é burguês como algo recente e anti-tradicional, nascido de processos negativos e destrutivos. Percebe-se muitas vezes, que os fenómenos actuais de crise são uma espécie de Némesis, o da volta do pêndulo: - são precisamente as forças, que no seu tempo, foram postas em marcha contra a antiga civilização tradicional europeia (não vamos entrar em detalhes), que se voltaram contra quem as havia evocado, destruindo-as uma a uma e levando mais longe, até uma fase ulterior mais avançada o processo geral de desintegração. Isto vê-se muito claramente no plano político-social, por exemplo nas relações evidentes que existem entre a revolução burguesa do Terceiro Estado e os movimentos socialistas e marxistas que seguiram, entre a democracia e o liberalismo por um lado e o socialismo do outro. Os primeiros serviram simplesmente para abrir a via aos segundos e estes, depois de os haverem deixado cumprir a sua função, não pensam senão em destruí-los.
Ocorrendo isto, há uma conclusão que é preciso rejeitar energicamente: a que consistiria em apoiar-se sobre o que sobrevive do mundo burguês, em defendê-lo e torná-lo como apoio para lutar contra as correntes de dissolução e subversão mais violentas, depois de ter tentado animar ou fortalecer estes vestígios com a ajuda de alguns valores mais altos e mais tradicionais.
Perante isto, a situação geral acentua-se cada vez mais, desde os acontecimentos cruciais que foram as duas grandes guerras mundiais e suas repercussões, adoptar esta atitude seria criar ilusões sobre as possibilidades práticas que existem. As transformações já ocorridas são demasiado profundas para serem reversíveis. As forças que estão em estado livre ou em vias de sê-lo, não são susceptíveis de serem reintegradas ao ponto das estruturas do mundo de ontem. É precisamente o facto das tentativas de reacção não se ligarem mais do que a estas estruturas desprovidas de toda a legitimidade superior, o que deu vigor e capacidade de se implantar às forcas de subversão. Por outro lado, tal via conduziria a um equívoco tão inadmissível sobre o plano ideal, como perigoso sobre o plano táctico. Como temos dito, os valores tradicionais – aqueles que nós chamamos “valores tradicionais” – não são os valores burgueses, mas sim a sua antítese. Reconhecer um valor a estas sobrevivências, associá-las de uma forma ou de outra aos valores tradicionais, utilizá-las para o fim que acabamos de indicar, levaria pois, quer a testemunhar uma pobre compreensão destes mesmos valores, quer a diminuí-los e a descer a uma forma de compromisso, ao mesmo tempo desprezível e perigoso. Perigoso pois, é o facto de ligar de uma forma ou de outra, as ideias tradicionais a formas residuais de civilização burguesa que iria expor estas, em mais de um aspecto legítimo e necessário, a sofrer o ataque inevitável, actualmente empreendido contra esta civilização.
É pois, para a solução oposta que nos devemos encaminhar mesmo se isto torna as coisas difíceis e comporta outro tipo de risco. É positivo cortar todos os laços com o que está destinado a desaparecer, mais ou menos em breve prazo. O problema será então manter uma linha de direcção geral sem apoiar-se em nenhuma forma dada ou transmitida, incluindo as do passado, que são autenticamente tradicionais mas que já pertencem à história. A continuidade não poderá ser mantida mais sobre o plano existencial, ou mais precisamente debaixo de uma forma de orientação íntima do ser, que deveria ir a par, com a maior liberdade individual virada para o exterior. Tal como se exporá de maneira detalhada a seguir, o apoio que a tradição poderá trazer não deve vir de esquemas regulares e reconhecidos de uma civilização nascida antigamente, mas sim, e antes de tudo, dos princípios doutrinais que ela continha, em estado pré-formal, ao mesmo tempo superior e anterior às formas particulares que se desenrolaram no curso da história, doutrina que no passado não pertencia às massas, mas que tinha o carácter de uma “doutrina interna”.
Além disso, existindo a impossibilidade de actuar de maneira positiva no sentido de um regresso ao sistema normal e tradicional, existindo a impossibilidade de ordenar organicamente e com coerência a sua própria existência no ambiente da sociedade, da cultura e dos costumes modernos, fica por saber em que medida se pode aceitar plenamente um estado de dissolução sem se ser influenciado interiormente por ele. Convém examinar igualmente, aquilo que na fase actual – em última análise, fase de transição – pode ser escolhido, separado do resto e assumido como forma livre de um comportamento, que exteriormente não seja anacrónico mas permita também identificar-se com o que há de mais avançado no pensamento e costumes contemporâneos, ainda que permanecendo interiormente determinado e orientado por um espírito completamente diferente.
A fórmula “ir, não onde se defende mas sim onde se ataca”, proposta por alguns, poderá ser adoptada pelo grupo dos homens diferenciados, descendentes da Tradição, aqueles que vamos tratar aqui. Isto significa que pode ser bom contribuir para derrubar o que vacila e pertence ao passado, ao mundo de ontem, em vez de assinalá-lo e de prolongar a sua existência. É uma táctica possível, cuja essência é impedir que a crise final seja obra de forças contrárias cuja acção se deverá entretanto aguentar. O risco de tal atitude é evidente: não se sabe quem terá a última palavra. Não há nada na época actual, assim mesmo, que não seja perigoso. Para quem permanece em pé, é talvez a única vantagem que tal atitude representa. Resumindo convém reter as seguintes ideias fundamentais:
- É preciso realçar o sentido de crise e o processo de dissolução que muitos deploram hoje em dia, e mostrar que o objectivo principal e real deste processo de destruição é a civilização e a sociedade burguesa, as quais, na escala dos valores tradicionais, tomavam o sentido de uma primeira negação do mundo que as havia precedido e que lhes era superior. Continuando, a crise do mundo moderno poderá eventualmente representar, segundo uma expressão hegeliana, uma “negação da negação”, e por consequência um fenómeno positivo. A alternativa é a seguinte: ou a negação da negação conduz ao nada – ao nada que brota das formas múltiplas do caos, da dispersão e do caos que caracterizam as numerosas tendências das últimas gerações; ou esta outra negação que apenas se esconde por detrás do sistema organizado da civilização material – ou esta negação vai criar para os homens que nos interessam aqui, um novo espaço livre, que eventualmente poderá representar a condição prévia de uma acção formadora posterior.
2. Fim de um ciclo. “Cavalgar o tigre”
Esta última ideia refere-se a uma perspectiva que, rigorosamente falando, não é a deste texto, pois diz respeito, não ao comportamento interior e pessoal, mas sim ao colectivo, não à realidade de hoje, mas sim a um futuro que não é possível hipotecar e do qual é essencial que não se faça depender de nenhuma forma o próprio comportamento.
Trata-se da perspectiva já mencionada anteriormente, segundo a qual a nossa época poderia ser, em última análise, uma época de transição. Vamos dedicar algumas palavras a este tema antes de abordarmos o problema principal que nos interessa, referindo-nos à doutrina de ciclos da vida e à ideia de que a época actual, assim como todos os fenómenos que a caracterizam, correspondem à fase terminal de um ciclo.
A fórmula que escolhemos como título deste livro “Cavalgar o Tigre”, pode servir de transição entre o que temos dito até aqui e a doutrina em questão. Esta fórmula do extremo oriente, significa que se uma pessoa consegue cavalgar um tigre, se o impede de nos atacar e se para além disso, se não cai, se permanece agarrado, pode acontecer que o consiga dominar; recordemos, para quem se interessa, que um tema análogo se encontra em muitas escolas de sabedoria tradicional, como o Zen japonês (as diversas situações do homem e do touro), e que a antiguidade clássica desenvolveu temas similares (as provas de Mitra, que se deixa arrastar por um touro furioso, sem o soltar, até que o animal se detém; então Mitra o mata).
Este simbolismo, aplica-se em vários planos. Pode referir-se a uma linha de conduta a seguir no plano interior, mas também a uma atitude que convém adoptar quando as situações críticas se manifestam no plano histórico e colectivo. Neste último caso, o que nos interessa é o vínculo que existe entre este símbolo e aquilo que ensina a doutrina geral da história, em particular sobre a sucessão das “quatro idades”. Esta doutrina, tal como tivemos oportunidade de expor em outras ocasiões, revestiu-se de aspectos idênticos tanto no Oriente como no Ocidente.
No mundo clássico fala-se do retrocesso progressivo da humanidade desde a Idade do Ouro, até ao que Hesíodo chama a Idade de Ferro. Nos ensinamentos hindus correspondentes, a idade final é chamada de Kali Yuga (Idade Sombra) e expressa o carácter essencial que lhe é próprio: precisamente num clima de dissolução, a passagem ao estado livre das forças individuais e colectivas, materiais, físicas e espirituais, que anteriormente tinham permanecido reprimidas de diversas formas, por uma lei proveniente do alto e por influências de ordem superior. Os textos tântricos deram uma imagem sugestiva desta situação, dizendo que correspondem ao “despertar” de uma divindade feminina – Kali – símbolo da força elementar e primordial do mundo e da vida, mas que se apresenta debaixo de aspectos infernais, como a deusa do sexo e dos ritos orgiásticos. “Adormecida” até agora – quer dizer, latente nestes últimos aspectos – estaria durante a “Idade Sombria” completamente desperta e em acção.
Tudo parece indicar que é precisamente a situação que se desenrola nestes últimos tempos e que teve seu epicentro na civilização e sociedades ocidentais, a que se estendeu rapidamente ao mundo inteiro; o facto da época actual se encontrar debaixo do signo do Aquário, poderá encontrar, por outro lado, uma interpretação normal em alusão às águas, nas quais tudo permanece em estado fluido e informe. Previsões formuladas à muitos séculos atrás – pois as ideias aqui expostas remontam a uma época longínqua – hoje se revelam singularmente actuais. Este contexto refere-se, como já dissemos, aos pontos de vista expostos, no que se apresenta de forma análoga o problema da atitude a adoptar durante a última idade, atitude aqui associada ao símbolo do tigre que se cavalga.
Com efeito, os textos que falam de Kali-Yuga e da Idade Sombria, também proclamam que as normas de vida válidas para as épocas em que as forças divinas permaneciam de certo modo vivas e actuantes, deviam ser consideradas como obsoletas durante a última idade. Esta veria aparecer um tipo de homem essencialmente diferente, cada vez mais incapaz de seguir os antigos preceitos, em razão da diferença do meio histórico, quer dizer planetário; estes preceitos, mesmo se fossem seguidos já não trariam os mesmos frutos. É por isto que se propõem agora regras diferentes e pelo que se aboliu a lei do segredo que cobria anteriormente algumas verdades, ou determinada ética e determinados ritos particulares, por causa do seu carácter perigoso e da antítese com as formas de uma existência normal, regulamentada pela Tradição Sagrada. O significado desta convergência de pontos de vista não escapa a ninguém. Estas ideias longe de terem, neste como em outros pontos, um carácter pessoal e contingente, referem-se essencialmente a perspectivas que o mundo da Tradição já havia conhecido quando foram previstas e estudadas situações gerais de um carácter irregular.
Examinemos agora como se aplica ao mundo exterior, ao meio em geral, o princípio consistente de cavalgar o tigre. Pode então significar que quando uma civilização atinge o seu auge é difícil alcançar um resultado qualquer resistindo, opondo-se directamente às forças em movimento. A corrente é muito forte e qualquer um correria o risco de ver-se arrastado. O essencial é não se deixar impressionar por aquilo que parece todo-poderoso, nem tão pouco pelo triunfo aparente das forças da época. Privadas de ligação com qualquer princípio superior, na realidade estas forças têm um campo de acção limitado.
Não faz falta pois auto-sugestionar-se pelo presente, nem pelo que nos rodeia, sem pressentir também as condições susceptíveis de se apresentarem mais tarde. A regra a seguir consiste em deixar livre o curso das forças e dos processos da época, permanecendo firmes e dispostos a intervir “quando o tigre, que não pode atirar-se sobre quem o cavalga estiver fatigado de correr”. Interpretado de uma forma particular o preceito cristão da não resistência ao mal, poderia ter um sentido análogo. Abandona-se a acção directa e cada um retira-se para posições mais reservadas.
As perspectivas que regem a doutrina das leis cíclicas estão aqui implícitas: quando um ciclo termina, outro começa, e o ponto culminante do processo é também aquele onde se produz o encaminhamento na direcção oposta. O problema da continuidade entre um ciclo e outro permanece no entanto exposto. Para recuperar uma imagem de Hofmansthal, a solução positiva seria a do reencontro entre os que souberam velar durante a longa noite e os que, talvez apareçam no novo amanhecer. Infelizmente não se pode estar seguro deste desenlace: não se pode prever com certeza de que forma nem em que contexto poderá manifestar-se uma certa continuidade entre o ciclo que chega ao seu fim e o ciclo seguinte. Convém pois conferir à linha de conduta, válida na época actual, daquela que antes havíamos falado, um carácter autónomo e um valor permanente e individual. Nós entendemos aqui, que a atracção exercida por perspectivas positivas, mais ou menos num breve plano não devem ter um papel importante. Inclusive poderiam estar ausentes por completo até ao fim do ciclo e as possibilidades apresentadas por um novo movimento, para além de um certo ponto podem dizer respeito a outros homens que, como nós próprios, se tenham mantido igualmente firmes, sem esperar nenhum resultado directo nem nenhuma mudança exterior.
Antes de abandonar o domínio introdutivo para abordar nosso tema principal, será talvez útil mencionar um outro ponto particular que está igualmente relacionado com as leis cíclicas. Trata-se das relações entre a civilização ocidental e as outras civilizações, particularmente a civilização oriental.
Entre aqueles que reconheceram a crise do mundo moderno e que renunciaram também a considerar a civilização moderna como a civilização por excelência, o apogeu e a bitola para qualquer outra civilização, há quem tenha voltado o seu olhar para o Oriente, onde subsiste uma orientação tradicional e espiritual da vida que, desde à longo tempo, deixou de servir ao Ocidente como base de organização efectiva dos diferentes domínios da existência. Inclusive tem-se perguntado se não se pode encontrar no Oriente pontos de referência úteis para a reintegração do Ocidente. René Guenon foi o defensor mais empenhado desta tendência.
Mas é preciso ver claramente sobre que aspectos se situa o problema, se se trata de simples doutrinas e de contactos “intelectuais” esta procura é legítima. Mas, convém assinalar, pelo menos em parte, que podemos encontrar exemplos e referências claras em nosso próprio passado ocidental e tradicional, sem necessidade de buscar numa civilização não europeia. Em todo o caso pouco se ganharia. Trata-se de um intercâmbio de alto nível entre elementos isolados que cultivam sistemas metafísicos. Se, pelo contrário, se aspira a influências reais com uma repercussão importante sobre a existência, não se pode ter ilusões. O Oriente segue agora o caminho que nós demoramos vários séculos a percorrer.
O “mito do Oriente” fora do círculo dos sábios e especialistas das disciplinas metafísicas é pois enganoso. “O deserto cresce”, não existe civilização que possa servir-nos de apoio, devemos enfrentar sozinhos nossos problemas. A única perspectiva, mas hipotética, que em contrapartida nos oferecem as leis cíclicas é esta: o processo decadente da “Idade Sombria” na sua fase final, começou entre nós; não está pois posto de parte que sejamos também nós os primeiros a superar o ponto zero, no momento em que outras civilizações, entradas mais tardiamente na mesma corrente, se encontrem, pelo contrário num estado similar ao nosso na actualidade, depois de ter abandonado – “superado” – e que oferecem ainda hoje os valores superiores e as formas de organização tradicionais susceptíveis de nos atrair. Resultaria pois que o Ocidente, invertendo os papéis, se encontraria numa situação para além do limite negativo e estaria qualificado para uma nova função de guia ou de chefe, muito diferente do que realizou no passado com a civilização tecno-industrial e material e que agora já debilitada teve como único resultado o nivelamento geral.
Quem sabe para alguns, estas breves indicações sobre perspectivas e problemas de ordem geral não tenham sido inúteis. Como tínhamos dito, voltaremos pois ao aspecto da vida pessoal que nos interessa: deste ponto de vista, definindo a orientação a dar a algumas experiências ou processos actuais com vista a extrair resultados diferentes dos que a maioria dos nossos contemporâneos consegue, importa estabelecer posições autónomas, independentes do que poderá ou não chegar a ocorrer no futuro.
- Julius Evola
"Pode então significar que quando uma civilização atinge o seu auge é difícil alcançar um resultado qualquer resistindo, opondo-se directamente às forças em movimento. A corrente é muito forte e qualquer um correria o risco de ver-se arrastado. O essencial é não se deixar impressionar por aquilo que parece todo-poderoso, nem tão pouco pelo triunfo aparente das forças da época. Privadas de ligação com qualquer princípio superior, na realidade estas forças têm um campo de acção limitado."
"A fórmula “ir, não onde se defende mas sim onde se ataca”, proposta por alguns, poderá ser adoptada pelo grupo dos homens diferenciados, descendentes da Tradição"
"A regra a seguir consiste em deixar livre o curso das forças e dos processos da época, permanecendo firmes e dispostos a intervir “quando o tigre, que não pode atirar-se sobre quem o cavalga estiver fatigado de correr”."
Vou ter de reler.
Excelente.
E fiz um link, com Vossa licença.
Obrigado.
O Liberalismo, tolerante, hipócrita e covarde, permitiu a infiltração de "pseudo-valores de cunho marxista" em nossa sociedade ocidental. Agora, somos reféns de toda essa "tragédia moderna"! Precisamos controlar a "fera", colocando, novamente, as "rédeas" na besta para, assim, cavalgá-la com o mínimo de segurança e controle!
Z.Pibral
Santos (SP), 29.02.2016
Excelente. Não é fácil "cavalgar 0 tigre", porém é importante termos a consciência de que a nossa sociedade é cheia de conflitos e que, parte deles, ocorrem por diferentes vias. Bacana a referência coma cultura do oriente! show.