A doutrina das castas (3/3)
Era este o segundo fundamento do regime das castas, fundamento completamente espiritual, porque, como já salientámos várias vezes, a Índia, em que este regime se reveste de uma das suas formas mais rígidas (de tal modo que degenerou em esclerose), nunca conheceu nenhuma organização centralizada que pudesse impô-lo por meio de um despotismo político ou económico. Por outro lado, também se encontram expressões deste segundo fundamento nas formas ocidentais da Tradição. É uma ideia clássica, por exemplo, que a perfeição não se avalie com um critério material, mas sim consista em realizar completamente a sua própria natureza; que a materialidade, no fundo, não signifique nada mais que a impotência para realizar a sua própria forma, a matéria, ϋλη, em Platão e também em Aristóteles, sendo esse fundo de indiferenciação de uma mobilidade fugaz que torna uma coisa ou um ser incompleto em relação a si próprio, não correspondente à sua norma e à sua «ideia», ou seja, precisamente ao seu dharma. Na divinização romana do «limite» — termen ou terminus — na elevação do deus Terminus, que lhe corresponde, à mais elevada dignidade, a ponto de associá-lo ao próprio Júpiter olímpico que, como princípio de toda a ordem, era também o deus protector dos «limites»; na tradição — susceptível de receber também significados superiores — segundo a qual o que abatia ou removia um dos limites de uma determinação territorial era um ser maldito que qualquer um podia até matar; no oráculo romano, ao anunciar-se que a época da destruição dos limites propostos à cupidez humana será também o saeculum do «fim do mundo» [18] — nestes elementos reflecte-se, esotericamente, um espírito semelhante. «É preciso que cada um seja cada um — ensinava Plotino [19] — que as nossas acções sejam nossas, que as acções de cada um lhe pertençam, sejam elas quais forem.» A ideia de que uma adequação perfeita do ser à sua função específica conduza a uma participação idêntica na espiritualidade do todo concebido como um organismo encontra-se nas melhores tradições greco-romanas e foi retomada seguidamente na visão orgânica em vigor na civilização germânico-romana da Idade Média.
Não são diferentes os pressupostos que estão na base desse sentimento de desinteresse, da alegria e de são orgulho pelo seu próprio ofício — a ponto de qualquer trabalho, por mais humilde que fosse, poder adquirir o aspecto de uma «arte» — que, como um eco do espírito tradicional, se tem frequentemente mantido entre certos povos europeus [20], até épocas recentes. O antigo camponês alemão, por exemplo, sentia como um título de nobreza o ser cultivador da terra, mesmo que não se elevasse a ver, como no antigo Irão, nesse trabalho um símbolo e um episódio da luta entre o deus da luz e o das trevas. Os membros das corporações e das guildas tinham tanto orgulho na sua tradição profissional como a nobreza o tinha na tradição do seu sangue. E quando Lutero, depois de São Tomás, ensinou que passar de uma profissão para outra para tentar ascender na hierarquia social é contrário à lei de Deus, pois Deus confere a cada um o seu status e tem de se lhe obedecer permanecendo nessa condição, e que portanto a única maneira de servir a Deus consiste em aplicar-se da melhor maneira possível à sua própria profissão — nestas ideias, em que se reflecte, nem que seja através das limitações próprias de um sistema teísta-devocional, o espírito da melhor Idade Média, mantém-se a tradição acima indicada. Com efeito, antes do advento da civilização do Terceiro Estado (mercantilismo, capitalismo), também no Ocidente a ética social, ratificada pela religião, consistia em realizar o seu próprio ser e conseguir a sua própria perfeição dentro dos quadros fixos definidos pela natureza de cada um e pelo grupo a que este pertencia. A actividade económica, o trabalho e o lucro só apareciam justificados na medida em que fossem necessários para a manutenção e para a dignidade de uma existência em conformidade com o status de cada um, sem que surgissem em primeiro plano os baixos interesses e a procura do lucro. E daí que resultasse também um carácter de impessoalidade activa neste mesmo domínio.
Tem-se dito que na hierarquia das castas se exprimiam relações como que de «potência» a «acto». Na casta superior como ideia manifestava-se de modo mais puro, mais completo e mais livre a mesma actividade que na casta inferior apresentava uma forma muito mais condicionada. A este respeito, é conveniente antes de mais denunciar as ideias demagógicas modernas acerca do «espírito de rebanho» dos sujeitos e da falta, nas sociedades tradicionais, do sentido da dignidade e da liberdade dos indivíduos que só a humanidade «evoluída» moderna teria conquistado. De facto, mesmo quando o lugar hierárquico do indivíduo não provinha do reconhecimento espontâneo da sua própria natureza e da fidelidade a esta última, a subordinação do inferior ao superior, longe de ser uma concordância passiva, era quase a expressão simbólica ritual de uma fidelidade e de uma dedicação ao seu próprio ideal, a uma forma mais elevada de si mesmo, que o inferior não podia viver directa e organicamente como a sua própria natureza — svâdharma — mas que no entanto podia eleger como centro da sua acção precisamente através da sua devoção e submissão activa em relação à casta superior [21]. Por outro lado, se no Oriente o sair da sua própria casta só era admitido excepcionalmente [22] e se estava bem longe de confundir um evadido como um ser realmente livre — contudo reconhecia-se a possibilidade de criar, por meio das suas acções, palavras e pensamentos, causas que, em virtude da analogia com o princípio ou com a hierarquia a que se estava votado, podiam produzir um novo modo de ser correspondente precisamente a esse princípio ou a essa hierarquia [23]. Para além da bhakti ou fides dirigida sem mediação para o Supremo, ou seja, para o incondicionado — à bhakti centrada em algo de superior atribuía-se o poder real e objectivo de resolver os elementos do que a tinha alimentado — depois do esgotamento do seu dharma — segundo este mesmo princípio [24] e, assim, e portanto de fazê-lo ascender não exterior e artificialmente — como é o caso na desordem e no arrivismo da sociedade moderna — mas sim profundamente, organicamente, a partir de dentro, de um degrau a outro da hierarquia, como reflexo da passagem do princípio transcendental do ser de uma sua possibilidade para outra.
Por outro lado, no que se refere particularmente a uma ordem social que tinha o seu centro num soberano, até ao Sacro Império Romano subsiste o principio — já defendido por Celso contra o dualismo do cristianismo das origens — de que os súbditos através da sua fidelidade ao seu príncipe podem demonstrar a sua fidelidade a Deus [25]. É uma antiga concepção indo-europeia a do súbdito como um ser que está ligado por um compromisso sagrado e livre à pessoa do soberano; esta fides ou devoção pessoal foi levada, no mundo tradicional, para além dos limites políticos e individuais, a ponto de atingir por vezes o valor de uma via de libertação. «Os sujeitos — salienta por exemplo Cumont a propósito do Irão [26] — consagravam aos seus reis divinizados não só as suas acções e as palavras, mas também os seus próprios pensamentos. O seu dever era uma dedicação total da sua personalidade àqueles monarcas igualados aos deuses. A militia sagrada dos Mistérios é apenas esta moral cívica considerada do ponto de vista religioso. O lealismo confundia-se assim com a fé.» A isto deve-se portanto acrescentar que nas formas mais nítidas e luminosas da Tradição se reconhecia igualmente a este lealismo a virtude de produzir os mesmos frutos que a fé promete. Ainda há pouco tempo se viu, no Japão, o general Nogi, o vencedor de Port Arthur, matar-se com a mulher, à morte do seu imperador, para o seguir nos mesmos caminhos do além-túmulo.
Com tudo isto esclarece-se em todos os aspectos o motivo por que dizemos que o segundo eixo de toda a organização tradicional é — além do rito e da existência de uma elite, não só humana, que representa a transcendência — a fidelidade. É esta a força que, tal como um magnetismo, estabelece os contactos, cria uma atmosfera psíquica, propicia as comunicações, estabiliza as estruturas e determina um sistema de coordenação e de gravitação entre os indivíduos isolados e entre estes e o centro. Quando começa a faltar este fluído, que em última análise tem a sua origem na liberdade e na espontaneidade espiritual da personalidade, o organismo tradicional perde a sua elementar força de coesão, fecham-se caminhos, os sentidos mais subtis atrofiam-se, as partes dissociam-se e atomizam-se — o que tem por consequência a imediata retirada das forças do alto, que deixam ir os homens para onde quiserem, segundo o destino criado pelas suas acções e que nenhuma influência superior poderá já modificar. É somente este o mistério da decadência.
18. O sentido do oráculo aqui citado converge com o ensinamento hindu de que a «idade obscura» — kali-yuga — fim de um ciclo, corresponde, entre outros aspectos, ao período da completa mistura das castas e do declínio dos ritos. Sobre tudo isto, cfr. L. PRELLER, Römische Myth., cit. p. 227-229.
19. PLOTINO, Enn., III, i, 4.
20. A este respeito, pode-se também recordar a máxima do Mânavadharmaçâstra (V, 129): «A mão de um artesão é sempre pura quando ele trabalha.»
21. Cfr. PLATÃO, Rep., 590 d: «É para que este homem [o ser comum] seja governado [interiormente] por uma autoridade semelhante à que governa o homem óptimo, que nós afirmamos que ele tem de servir este homem óptimo, que dentro de si é governado pela parte divina, e não refutaremos que a sua obediência seja um dano para ele… mas é melhor para todos ser-se regido por um governador sábio e divino, melhor ainda se o tiver propriamente dentro de si; senão, que seja regido a partir de fora».
22. Rigorosa e metafisicamente falando, seria necessário para isto «já não ter nenhum demónio», tendo-se transformado a si próprio «no seu próprio demónio»; por outras palavras, seria necessário que o indivíduo humano se identificasse com o princípio transcendental da sua individualidade e do seu nascimento particular. Numa certa medida isto dependeria da via do asceta — samâno ou yogi — venerado pelos indo-arianos acima de todas as castas e desvinculado, aos seus olhos, dos deveres de cada uma delas.
23. No Mânavadharmaçâstra, enquanto por um lado (VIII, 414) se afirma: «Um çûdra, mesmo que seja alforriado pelo seu senhor, nem por isso é libertado do estado de servidão: sendo este estado o seu estado natural, quem poderá libertá-lo dele?» — por outro lado diz-se (IX, 334-335) que o çûdra que obedece incondicionalmente às castas superiores realiza um dharma que não se limita só a dar-lhe a felicidade na terra, como também lhe facilita igualmente «um nascimento numa condição mais elevada». Cfr. Ibid., X, 42: «Graças ao poder da sua ascese, e graças ao mérito dos seus antepassados, cada um, em qualquer idade, pode chegar cá abaixo por um nascimento mais elevado, assim como pode também ser reduzido a uma condição inferior».
24. Cfr. o ensinamento de PLOTINO (Enn., III, iv, 3): «Quando se deixa de viver… é preciso receber de outrem a força vital, dado que [o indivíduo] perdeu a sua; e ele recebê-la-á daquele a quem ele, enquanto vivia, tinha por sua vontade permitido que agisse sobre si e o dominasse, e que era verdadeiramente o seu demónio.» Neste caso particular que nos ocupa, este «demónio» corresponderia ao princípio representado pela casta que era o objecto da sua devoção leal e activa.
25. Cfr. DE STEFANO, Idea Imp. Fed. II, cit., pp. 75-76.
26. R CUMONT, Les religions orientales dans le pagan. romain, cit., pp. XVII-XVIII.
Não são diferentes os pressupostos que estão na base desse sentimento de desinteresse, da alegria e de são orgulho pelo seu próprio ofício — a ponto de qualquer trabalho, por mais humilde que fosse, poder adquirir o aspecto de uma «arte» — que, como um eco do espírito tradicional, se tem frequentemente mantido entre certos povos europeus [20], até épocas recentes. O antigo camponês alemão, por exemplo, sentia como um título de nobreza o ser cultivador da terra, mesmo que não se elevasse a ver, como no antigo Irão, nesse trabalho um símbolo e um episódio da luta entre o deus da luz e o das trevas. Os membros das corporações e das guildas tinham tanto orgulho na sua tradição profissional como a nobreza o tinha na tradição do seu sangue. E quando Lutero, depois de São Tomás, ensinou que passar de uma profissão para outra para tentar ascender na hierarquia social é contrário à lei de Deus, pois Deus confere a cada um o seu status e tem de se lhe obedecer permanecendo nessa condição, e que portanto a única maneira de servir a Deus consiste em aplicar-se da melhor maneira possível à sua própria profissão — nestas ideias, em que se reflecte, nem que seja através das limitações próprias de um sistema teísta-devocional, o espírito da melhor Idade Média, mantém-se a tradição acima indicada. Com efeito, antes do advento da civilização do Terceiro Estado (mercantilismo, capitalismo), também no Ocidente a ética social, ratificada pela religião, consistia em realizar o seu próprio ser e conseguir a sua própria perfeição dentro dos quadros fixos definidos pela natureza de cada um e pelo grupo a que este pertencia. A actividade económica, o trabalho e o lucro só apareciam justificados na medida em que fossem necessários para a manutenção e para a dignidade de uma existência em conformidade com o status de cada um, sem que surgissem em primeiro plano os baixos interesses e a procura do lucro. E daí que resultasse também um carácter de impessoalidade activa neste mesmo domínio.
Tem-se dito que na hierarquia das castas se exprimiam relações como que de «potência» a «acto». Na casta superior como ideia manifestava-se de modo mais puro, mais completo e mais livre a mesma actividade que na casta inferior apresentava uma forma muito mais condicionada. A este respeito, é conveniente antes de mais denunciar as ideias demagógicas modernas acerca do «espírito de rebanho» dos sujeitos e da falta, nas sociedades tradicionais, do sentido da dignidade e da liberdade dos indivíduos que só a humanidade «evoluída» moderna teria conquistado. De facto, mesmo quando o lugar hierárquico do indivíduo não provinha do reconhecimento espontâneo da sua própria natureza e da fidelidade a esta última, a subordinação do inferior ao superior, longe de ser uma concordância passiva, era quase a expressão simbólica ritual de uma fidelidade e de uma dedicação ao seu próprio ideal, a uma forma mais elevada de si mesmo, que o inferior não podia viver directa e organicamente como a sua própria natureza — svâdharma — mas que no entanto podia eleger como centro da sua acção precisamente através da sua devoção e submissão activa em relação à casta superior [21]. Por outro lado, se no Oriente o sair da sua própria casta só era admitido excepcionalmente [22] e se estava bem longe de confundir um evadido como um ser realmente livre — contudo reconhecia-se a possibilidade de criar, por meio das suas acções, palavras e pensamentos, causas que, em virtude da analogia com o princípio ou com a hierarquia a que se estava votado, podiam produzir um novo modo de ser correspondente precisamente a esse princípio ou a essa hierarquia [23]. Para além da bhakti ou fides dirigida sem mediação para o Supremo, ou seja, para o incondicionado — à bhakti centrada em algo de superior atribuía-se o poder real e objectivo de resolver os elementos do que a tinha alimentado — depois do esgotamento do seu dharma — segundo este mesmo princípio [24] e, assim, e portanto de fazê-lo ascender não exterior e artificialmente — como é o caso na desordem e no arrivismo da sociedade moderna — mas sim profundamente, organicamente, a partir de dentro, de um degrau a outro da hierarquia, como reflexo da passagem do princípio transcendental do ser de uma sua possibilidade para outra.
Por outro lado, no que se refere particularmente a uma ordem social que tinha o seu centro num soberano, até ao Sacro Império Romano subsiste o principio — já defendido por Celso contra o dualismo do cristianismo das origens — de que os súbditos através da sua fidelidade ao seu príncipe podem demonstrar a sua fidelidade a Deus [25]. É uma antiga concepção indo-europeia a do súbdito como um ser que está ligado por um compromisso sagrado e livre à pessoa do soberano; esta fides ou devoção pessoal foi levada, no mundo tradicional, para além dos limites políticos e individuais, a ponto de atingir por vezes o valor de uma via de libertação. «Os sujeitos — salienta por exemplo Cumont a propósito do Irão [26] — consagravam aos seus reis divinizados não só as suas acções e as palavras, mas também os seus próprios pensamentos. O seu dever era uma dedicação total da sua personalidade àqueles monarcas igualados aos deuses. A militia sagrada dos Mistérios é apenas esta moral cívica considerada do ponto de vista religioso. O lealismo confundia-se assim com a fé.» A isto deve-se portanto acrescentar que nas formas mais nítidas e luminosas da Tradição se reconhecia igualmente a este lealismo a virtude de produzir os mesmos frutos que a fé promete. Ainda há pouco tempo se viu, no Japão, o general Nogi, o vencedor de Port Arthur, matar-se com a mulher, à morte do seu imperador, para o seguir nos mesmos caminhos do além-túmulo.
Com tudo isto esclarece-se em todos os aspectos o motivo por que dizemos que o segundo eixo de toda a organização tradicional é — além do rito e da existência de uma elite, não só humana, que representa a transcendência — a fidelidade. É esta a força que, tal como um magnetismo, estabelece os contactos, cria uma atmosfera psíquica, propicia as comunicações, estabiliza as estruturas e determina um sistema de coordenação e de gravitação entre os indivíduos isolados e entre estes e o centro. Quando começa a faltar este fluído, que em última análise tem a sua origem na liberdade e na espontaneidade espiritual da personalidade, o organismo tradicional perde a sua elementar força de coesão, fecham-se caminhos, os sentidos mais subtis atrofiam-se, as partes dissociam-se e atomizam-se — o que tem por consequência a imediata retirada das forças do alto, que deixam ir os homens para onde quiserem, segundo o destino criado pelas suas acções e que nenhuma influência superior poderá já modificar. É somente este o mistério da decadência.
18. O sentido do oráculo aqui citado converge com o ensinamento hindu de que a «idade obscura» — kali-yuga — fim de um ciclo, corresponde, entre outros aspectos, ao período da completa mistura das castas e do declínio dos ritos. Sobre tudo isto, cfr. L. PRELLER, Römische Myth., cit. p. 227-229.
19. PLOTINO, Enn., III, i, 4.
20. A este respeito, pode-se também recordar a máxima do Mânavadharmaçâstra (V, 129): «A mão de um artesão é sempre pura quando ele trabalha.»
21. Cfr. PLATÃO, Rep., 590 d: «É para que este homem [o ser comum] seja governado [interiormente] por uma autoridade semelhante à que governa o homem óptimo, que nós afirmamos que ele tem de servir este homem óptimo, que dentro de si é governado pela parte divina, e não refutaremos que a sua obediência seja um dano para ele… mas é melhor para todos ser-se regido por um governador sábio e divino, melhor ainda se o tiver propriamente dentro de si; senão, que seja regido a partir de fora».
22. Rigorosa e metafisicamente falando, seria necessário para isto «já não ter nenhum demónio», tendo-se transformado a si próprio «no seu próprio demónio»; por outras palavras, seria necessário que o indivíduo humano se identificasse com o princípio transcendental da sua individualidade e do seu nascimento particular. Numa certa medida isto dependeria da via do asceta — samâno ou yogi — venerado pelos indo-arianos acima de todas as castas e desvinculado, aos seus olhos, dos deveres de cada uma delas.
23. No Mânavadharmaçâstra, enquanto por um lado (VIII, 414) se afirma: «Um çûdra, mesmo que seja alforriado pelo seu senhor, nem por isso é libertado do estado de servidão: sendo este estado o seu estado natural, quem poderá libertá-lo dele?» — por outro lado diz-se (IX, 334-335) que o çûdra que obedece incondicionalmente às castas superiores realiza um dharma que não se limita só a dar-lhe a felicidade na terra, como também lhe facilita igualmente «um nascimento numa condição mais elevada». Cfr. Ibid., X, 42: «Graças ao poder da sua ascese, e graças ao mérito dos seus antepassados, cada um, em qualquer idade, pode chegar cá abaixo por um nascimento mais elevado, assim como pode também ser reduzido a uma condição inferior».
24. Cfr. o ensinamento de PLOTINO (Enn., III, iv, 3): «Quando se deixa de viver… é preciso receber de outrem a força vital, dado que [o indivíduo] perdeu a sua; e ele recebê-la-á daquele a quem ele, enquanto vivia, tinha por sua vontade permitido que agisse sobre si e o dominasse, e que era verdadeiramente o seu demónio.» Neste caso particular que nos ocupa, este «demónio» corresponderia ao princípio representado pela casta que era o objecto da sua devoção leal e activa.
25. Cfr. DE STEFANO, Idea Imp. Fed. II, cit., pp. 75-76.
26. R CUMONT, Les religions orientales dans le pagan. romain, cit., pp. XVII-XVIII.
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