A doutrina das castas (2/3)

Quando o sentido da personalidade não estiver centrado no princípio efémero da individualidade humana, destinada a deixar de si apenas uma «sombra» à sua morte, tudo isto se apresenta de maneira muito clara e natural. É certo que se pode «construir» muito, mas do ponto de vista superior do que sabe que o ruir do organismo conduz ao nada, a «construção» não tem valor quando não prolongar a vontade profunda que é a razão de ser de um determinado nascimento e que não pode ser assim tão facilmente suplantada por uma decisão momentânea e arbitrária, tomada num dado momento da existência terrestre. E, depois de compreendido tudo isto, também se compreende por que razão hoje em dia tenha de desaparecer fatalmente todo o sentido e a necessidade das castas. Enquanto «Eu», o homem moderno com efeito só conhece o que se inicia com o nascimento e que mais ou menos se extingue com a morte. Tudo se reduz ao simples indivíduo humano e toda a recordação do «antes» já desapareceu. Assim desaparece também a possibilidade de tomar contacto com as forças de que é efeito um determinado nascimento, de se ligar de novo a esse elemento não-humano do homem que, estando para aquém do nascimento, está igualmente para além da morte e constitui o «lugar» de tudo o que pode eventualmente ser realizado para além da própria morte e é o principio de uma incomparável segurança. Sendo assim quebrado o ritmo, fechados os contactos, destruídas repentinamente as grandes distâncias, parecem abertas todas as vias e todos os campos se saturam de acções desordenadas, inorgânicas, sem base nem significado profundo, dominadas por motivações na realidade temporais e individuais, por paixões, pelos baixos interesses e pela vaidade. A «Cultura», aqui, já não significa a realização do ser numa atitude séria de adesão e de fidelidade — significa pelo contrário «construir-se». E como são as areias movediças desse nada que é o Eu empírico humano sem nome e sem tradição que servem de base a essa construção, assim avança a pretensão à igualdade, ao direito de se poder ser, em princípio, tudo o que qualquer outro também pode ser e não se reconhece nenhuma diferença mais verdadeira e mais justa que a «conquistada» com o seu próprio esforço e com o próprio «mérito» nos termos de uma ou de outra das extremamente vãs construções intelectuais, morais ou sociais dos últimos tempos. Nestas condições, é natural que fiquem apenas os limites da pior herança física transformados em sinais de impenetráveis significados, suportados pois, ou gozados, como um capricho do destino; é também lógico que a personalidade e hereditariedade sanguínea, a vocação e a função social sejam elementos que se tornam cada vez mais discordantes até atingirem estados de verdadeira e trágica dilaceração interior e exterior e, no plano do direito e da ética, chegarem à destruição qualitativa, ao nivelamento relativo a direitos e deveres iguais, a uma moral social igualitária, que pretende impor-se a todos no mesmo grau e ser válida para todos, com plena indiferença pelas naturezas individuais e pelas diferentes dignidades íntimas. E não tem outro significado o «superamento» das castas e das ordens tradicionais. O indivíduo conquistou toda a sua «liberdade»; e a corrente que o prende não é medida, para que a sua embriaguez e a sua ilusão de marioneta em movimento não conheça limites.
Era bem outra a liberdade que o homem da Tradição conhecia. Consistia não em afastar-se, mas sim em poder juntar-se ao tronco mais profundo da sua própria vontade, que está relacionada com a própria «forma» existencial. Na realidade, o que corresponde ao nascimento e ao elemento físico de um ser, reflecte o que se pode chamar, em sentido geométrico, a resultante das várias forças ou tendências em acção no seu nascimento: ou seja, reflecte a direcção da força mais forte. Nesta força, aliás, podem ter sido arrastadas tendências de menor intensidade, quase veleidades de forças, a que correspondem os dons e as tendências que no plano da consciência individual mais exterior podem entrar em contradição quer com a própria pré-formação orgânica, quer com os deveres da casta e com o ambiente a que se pertence. Estes casos de contradição interna numa organização tradicional constituída de acordo com a lei das castas têm de se considerar excepcionais. Em contrapartida, tornam-se preponderantes numa sociedade que já não conhece castas nem, em geral, corpos sociais distintos, em que nenhuma lei reúne, conserva e aperfeiçoa dons e qualificações para determinadas funções. Encontra-se aqui o caos das possibilidades existenciais e psíquicas, que condena a maioria a um estado de desarmonia e de dilaceração: como se vê acontecer hoje em dia. Sem dúvida, pode ter existido também uma certa margem de indeterminação no homem tradicional, mas que nele servia apenas para salientar o lado activo das duas máximas: «Conhece-te a ti próprio» (com o seu complemento: «Nada de supérfluo») e «Sê tu mesmo», que implicavam uma acção formadora e de organização interna, até à eliminação da referida margem e à actuação da unidade completa de si consigo mesmo. Descobrir precisamente em si mesmo «a dominante» sugerida pela sua própria forma e da própria casta, e querê-la, ou seja, transformá-la num imperativo ético [10] e, além disso, realizá-la «ritualmente» em fidelidade com vista a destruir tudo o que vincula à terra como instinto, motivações hedonistas e avaliações materiais — eis o complemento da concepção acima referida e o que conduz ao segundo fundamento do regime das castas no seu «encerramento» e estabilidade.
Por outro lado, tem de se ter presente também o aspecto do espírito tradicional segundo o qual não existia objecto ou função que se pudesse considerar em si superior ou inferior a outro. A verdadeira diferença correspondia pelo contrário à maneira como era vivido o objecto ou a função. Ao modo terrestre, assente na utilidade ou na cupidez — sâkâma-karma — opunha-se, no exemplo característico oferecido pela Índia ariana, o modo daquele que actua sem se preocupar com os frutos, actuando pela acção em si — nishkâma-karma — fazendo de cada acto um rito e uma «oferenda». Era esta a via da bhakti — termo que aqui corresponde mais ao sentido viril da fides medieval que ao sentido piedoso que prevaleceu na ideia cristã da «devoção». A acção realizada de acordo com este significado de bhakti era comparada a um fogo gerador de luz, em que se consuma e purifica toda a matéria do próprio acto. E a medida em que o acto estava precisamente livre da matéria, destacado da cupidez e da paixão e bastando-se a si mesmo, portanto — para usarmos analogicamente a expressão aristotélica — acto puro — esta medida definia exactamente a hierarquia das actividades, e por consequência das castas ou dos outros corpos a estas correspondentes como «classes funcionais».
Dadas estas premissas, que não eram teóricas mas sim vividas, e portanto frequentemente nem sequer expressas, a aspiração a passar de uma certa forma de actividade a outra, que, do ponto de vista exterior ou utilitário, poderia apresentar-se a alguém como mais digna e vantajosa — e assim a passar de uma casta para outra — só podia ter, no mundo da Tradição, uma força muito escassa, de modo que a hereditariedade das funções se estabelecia espontaneamente mesmo onde não existiam verdadeiras castas, mas apenas grupos sociais. Todas as espécies de funções e de actividades apareciam de igual modo — e somente — como ponto de partida para uma elevação em sentido diferente, vertical, não na ordem temporal mas sim na espiritual. Cada um dentro da sua própria casta, na fidelidade à sua própria casta, na fidelidade à sua própria natureza, na obediência não a uma moral geral, mas sim à sua própria moral, à moral da sua própria casta, sob este aspecto tinha a mesma dignidade e a mesma pureza que outro: um servo — çûdra — valia tanto como um rei. Cada um mantinha a sua função na ordem geral e, por meio da sua bhakti, participava também no princípio sobrenatural desta mesma ordem. Por isso disse-se: «O homem atinge a perfeição adorando Aquele de que provêm todos os viventes e todo este universo é penetrado, por meio da realização do seu próprio modo de ser — svâdharma.» [11] O Deus declara: «Seja qual for o modo em que os homens venham a mim, aceito-os dessa maneira: de todas as formas seguem a minha via» [12] e ainda: «Faz sempre o que deve ser feito, sem anseios, porque o homem que age num desinteresse activo alcança o Supremo.» [13] O conceito de dharma, ou natureza própria, a que se pede portanto que seja fiel [14], provém da raiz dr = suster, levar ou manter em cima, para exprimir precisamente o elemento «ordem», «forma» ou «cosmos» que a Tradição encarna e põe em movimento frente ao caos e ao devir. Através do dharma, o mundo tradicional — tal como, de resto, todas as coisas e todos os seres — sustém-se, as barragens contra o mar da pura contingência e da temporalidade são firmes, os viventes participam na estabilidade [15]. Compreende-se então por que motivo o facto de sair da sua própria casta, bem como a mistura das castas ou apenas dos direitos, dos deveres, das morais e dos cultos de cada uma das castas era considerado um sacrilégio que destrói a eficácia de todos os ritos, e por isso impele o culpado para os «infernos» [16], quer dizer, para a ordem das influências demoníacas da natureza inferior — de modo a fazê-lo tornar-se o único ser «impuro» de toda a hierarquia, um pária, «intocável» por ser um centro de contágio psíquico num sentido de dissolução interior. E é interessante o facto de só o «fora de casta» na Índia ser considerado um excluído, evitado até pela mais baixa das castas, mesmo que tivesse pertencido à mais elevada: enquanto ninguém se sentia humilhado devido à sua própria casta e o próprio çûdra tinha tanto orgulho na sua casta e desejava tanto mantê-la como o brâhmana de mais alta categoria. A ideia da contaminação, nas suas linhas gerais, só se aplicava ao indivíduo de casta superior que se misturasse com o de casta inferior, mas até este último se sentia contaminado com toda a mistura com o indivíduo de casta superior [17]. Na realidade, na mistura de ouro e do chumbo, não é só o primeiro que se altera, mas também o segundo: ambos perdem a sua natureza. Era preciso que cada um fosse ele mesmo. Assim, era a mistura em si própria e não uma determinada mistura que, ao suprimir aquilo a que Goethe chamaria o «limite criador», atentava contra a organização tradicional e abria as portas às forças inferiores. O objectivo era a transfiguração da «forma», obtida através da bhakti e do nishkâma-karma, ou seja, através da acção como rito e como oferenda: a alteração, a destruição da «forma», fosse em que sentido fosse, era considerada pelo contrário só como uma evasão degradante. O fora da casta era simplesmente o vencido — um caído, patitas, como era chamado no Oriente ariano.

10. O único pensador moderno que, aliás sem ter uma consciência precisa disso, se aproximou deste ponto de vista, talvez seja Nietzsche com a sua moral absoluta assente na base «natural» (cfr. R. REININGER, F. Nietzsches Kampf um den Sinn des Lebens, Viena, 1925, e J. EVOLA, Cavalcare la Tigre, cit.).
11. Bhagavad-gitâ, XVIII, 46.
12. Ibid., IV, 11. Cfr. XVII, 3, em que se afirma que a «devoção» de cada um tem de ser conforme à própria natureza.
13. Ibid., III, 19. Cfr. Mânavadharmaçâstra, II, 5 (tb. II, 9): «Cumprindo os deveres prescritos [pela casta] sem visar uma recompensa, o homem alcança a imortalidade».
14. Bhagavad-gitâ, XVIII, 47 (cfr. III, 35): «Mais vale o seu próprio dharma, mesmo que seja imperfeitamente realizado, que o dharma de outro bem executado. O que realiza o seu próprio dharma não incorre em culpa»
15. Cfr. J. WOODROFFE, Skakti and Shâkta, Londres, 1929, p. 700.
16. Cfr. Bhagavad-gitâ, I, 42-44. A propósito do dever de fidelidade à função específica e à moral da sua própria casta, é característico o episódio de Râmâ que mata um servo — çûdra — que se tinha dedicado à ascese, usurpando o direito da casta brahmana. É também notável, em relação à mesma ordem de ideias, o ensinamento de que a «idade do ferro», ou «idade obscura», começará quando os servos praticarem a ascese, e iremos ver que este é precisamente um dos sinais dos nossos tempos, através de certas ideologias plebeias acerca do «trabalho» (que é o dharma do servo) entendido como uma espécie de «ascese».
17. Cfr. BOUGLÉ, Rég. cast., cit., p. 205; M. MÜLLER, Essais de Mythol. comparée, tr. fr., Paris, 1873, p. 404. A ideia da contaminação desaparece, dentro de certos limites, no que se refere às mulheres, susceptíveis de serem tomadas por homens de casta superior, sem que por este facto eles se contaminem. Tradicionalmente, a mulher, com efeito, ligava-se à casta, não tanto de uma maneira directa como através do seu marido, e isto não significava senão um campo, que pode ser mais ou menos, propício, mas que não pode fazer com que a semente que nele se lançar produza uma planta essencialmente de espécie diferente (cfr. sobre este assunto Mânavadharmaçâstra, IX, 35-36, 22: «Sejam quais forem as qualidades de um homem a quem uma mulher esteja legitimamente ligada, esta adquire-as da mesma maneira que a água de um rio ao unir-se ao oceano»). Contudo, tem de se ter presente que isto deixa de ser verdadeiro na medida em que as estruturas existenciais tradicionais vão perdendo a sua força vital.

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