A doutrina das castas (1/3)

A organização tradicional, enquanto «forma» vitoriosa sobre o caos e encarnação da ideia metafísica da estabilidade e da justiça, teve uma das suas expressões principais no sistema das castas. A separação dos indivíduos em castas, ou grupos equivalentes, em função da sua natureza e da categoria hierárquica das suas actividades em relação à espiritualidade pura, encontra-se com características constantes em todas as formas mais altas de civilização tradicional e constitui a essência da legislação primordial e da ordem de acordo com a justiça. A conformidade à casta surgiu como o primeiro dever que teve a humanidade tradicional.
No seu aspecto mais completo — tal como se apresenta nomeadamente no antigo sistema indo-ariano — a hierarquia das castas corresponde visivelmente à das diversas funções próprias de todo o organismo regido pelo espírito. Neste organismo encontram-se, no limite inferior, as energias ainda indiferenciadas e impessoais da matéria e da simples vitalidade: mas já se exerce sobre elas a acção regular das funções do metabolismo e da economia orgânica em geral, que por sua vez encontram na vontade a força que move e dirige o corpo como um todo no tempo e no espaço. Finalmente, a alma, como centro, poder soberano e luz do organismo inteiro. O mesmo acontece com as castas: as actividades dos servos ou trabalhadores — çûdra — depois as da burguesia — vaiçya — mais acima, a nobreza guerreira — kshatriya — e, finalmente, os expoentes da autoridade e do poder espiritual (os brâhmana, no sentido originário, e os chefes como pontífices) — constituíam uma hierarquia que correspondia precisamente à de todo o organismo de tipo superior.
Era esta a organização indo-ariana, de que é extremamente afim a irânica, articulada nos quatro pishtra dos Senhores do fogo — athreva —, dos guerreiros — rathaestha —, dos chefes de família — vâstriya-fshuyant — e dos servos destinados ao trabalho manual — hûti. Encontra-se um esquema semelhante noutras civilizações, até à Idade Média europeia, que conheceu a divisão em servos, burguesia, nobreza e clero. Na concepção platónica as castas correspondem a poderes da alma e a determinadas virtudes: aos dominadores, άρχοντεζ , aos guerreiros, φυλακεζ ou επικουροί, e aos trabalhadores manuais, δημιουργοί, correspondem assim o espírito, νουζ, e a cabeça, o animus, θυμοειδέζ, e o peito, a faculdade de desejo, έπιθυμητικόυ e a parte inferior do corpo: sexo e nutrição. Assim a ordem e a hierarquia exterior correspondem a uma ordem e a uma hierarquia interior, de acordo com a justiça [1]. Encontra-se igualmente a ideia da correspondência orgânica na conhecida imagem védica da proveniência das várias castas de partes diferentes do corpo do «homem primordial» [2].
As castas, antes de definirem grupos sociais, definiam funções, e modos típicos de ser e de agir. A correspondência das possibilidades naturais fundamentais do indivíduo a uma ou a outra dessas funções determinava a sua pertença à casta correspondente: de modo a poder reconhecer nos deveres próprios da sua casta, naquilo a que esta era tradicionalmente obrigada, a explicação normal da sua própria natureza pessoal [3] — e para além da possibilidade do seu desenvolvimento, o seu carisma no conjunto da ordem «vinda de cima». É por isso que no mundo tradicional o regime das castas surgiu e reinou a título de uma calma instituição natural, assente sobre algo evidente aos olhos de todos, e não sobre a tirania, violências ou, para usar a gíria dos tempos modernos, sobre uma «injustiça social». Reconhecendo a sua própria natureza, o homem tradicional reconhecia também o seu «lugar», a sua função e as justas relações de superioridade ou de inferioridade: daí que se o vaiçya não reconhecesse a autoridade de um kshatríya ou se este não mantivesse com firmeza a sua superioridade em relação ao vaiçya ou ao çûdra — isto era considerado menos como culpa que como ignorância. Na hierarquia não se tratava de uma questão de vontade humana, mas sim de uma lei da natureza: tão impessoal como a que determina que o lugar de um líquido mais leve não possa deixar de ser por cima do de um líquido mais denso, desde que não intervenham causas perturbadoras. Considerava-se como um princípio inabalável o de que «se os homens fizerem uma regra de acção não conforme à sua natureza, não deve ser considerada uma regra de acção» [4].
O que se choca mais com a mentalidade dos modernos no regime das castas é a lei da hereditariedade e a do «encerramento». Parece uma coisa «injusta» que o nascimento vá determinar como uma fatalidade a posição social e o tipo de actividade a que o homem terá de se consagrar e que não deverá abandonar, nem por uma forma de actividade inferior nem sequer por uma superior, sem se tornar um «fora da casta», um pária, de quem todos se afastarão. Mas se nos referirmos à visão tradicional geral da vida, estas dificuldades desaparecem. O encerramento das castas assentava em dois princípios fundamentais.
O primeiro deriva do facto de — como já se disse — o homem tradicional considerar tudo o que é visível e terrestre simplesmente como efeitos de causas de uma ordem superior. Por isso, no aspecto particular que tratamos, o nascer de acordo com este ou aquele nascimento, homem ou mulher, de uma casta ou de outra, de uma raça ou de outra, fornecidos de certos e determinados dotes e disposições, e assim por diante, para ele não era um «acaso», uma circunstância com que não temos nada a ver e que portanto está isenta de preconceitos. Para o homem tradicional tudo isto, pelo contrário, se explicava por uma correspondência à natureza do que o princípio que se tornou o «Eu» humano quis ou foi transcendentalmente, no momento de se lançar num nascimento terrestre. Este é um dos aspectos da doutrina hindu do karma; se não corresponde ao que vulgarmente se entende por reencarnação [5], no entanto implica a ideia genérica de uma pré-existência de causas, e o princípio: «Os herdeiros das acções são os seres. Do ser nasce o re-ser e como for a acção, será também o novo ser.» Por outro lado, doutrinas deste género não foram só correntes no Oriente. Era um ensinamento helenístico não só que «a alma primeiro escolheu o seu próprio demónio e a sua própria vida», mas também que «o corpo foi formado à imagem da alma que encerra» [6]. Segundo certos pontos de vista ario-irânicos, que passaram para a Grécia e depois para Roma, a doutrina da realeza sagrada estava precisamente ligada à concepção de que as almas se orientam por afinidade para um planeta determinado, a que corresponderão as qualidades predominantes e a categoria do nascimento humano — e o rei era considerado domus natus precisamente porque tinha percorrido a linha das influências solares [7]. E para quem gostar das justificações «filosóficas», pode-se recordar que a teoria de Kant e de Schopenhauer sobre o chamado «carácter inteligível» — «carácter noménico», anterior ao mundo fenoménico — remonta a uma ordem de ideias não muito diferente.
Pois bem, dadas estas premissas, se excluirmos portanto a ideia do nascimento como acaso, a doutrina das castas apresenta-se sob uma luz bastante diferente. Plotino ensinava: «O plano geral é um: mas divide-se em partes desiguais, de modo que no seu conjunto existem diferentes regiões, umas melhores, outras menos agradáveis — e as almas, também desiguais, residem em lugares diferentes que convêm às suas próprias diferenças. Assim tudo fica de acordo — e a diferença das situações corresponde à desigualdade das almas.» [8] Pode-se portanto dizer que não é o nascimento que determina a natureza, mas sim a natureza que determina o nascimento; mais precisamente, que se possui um determinado espírito porque se nasceu numa determinada casta, mas ao mesmo tempo nasceu-se numa determinada casta porque — transcendentemente — se tem já um determinado espírito. Daí resulta que a desigualdade das castas, longe de ser artificial, injusta e arbitrária, era apenas o reflexo e a institucionalização de uma desigualdade mais profunda e íntima preexistente. Era uma aplicação superior do princípio: suum cuique.
As castas, na ordem de uma tradição viva, por assim dizer, representavam o «lugar» natural da unidade, cá em baixo, de vontades ou vocações afins; e a transmissão hereditária, regular e fechada, preparava um grupo homogéneo de inclinações propícias — orgânico-vitais e mesmo psíquicas — com vista ao desenvolvimento regular, por parte dos indivíduos, das referidas determinações ou disposições pré-natais no plano da existência humana. O indivíduo não «recebia» a sua natureza da casta — era antes esta que lhe dava o modo de reconhecer ou de «recordar» a sua própria natureza e vontade, oferecendo-lhe ao mesmo tempo uma espécie de património oculto, ligado ao sangue, para o auxiliar a realizar harmoniosamente esta última. Quanto às atribuições, às funções e aos deveres da casta, iam servir de quadro ao desenvolvimento regular das suas possibilidades no conjunto social. Nas castas superiores, a iniciação completava este processo, despertando e suscitando no indivíduo influências já orientadas numa direcção sobrenatural [9]. O jus singulare, ou seja, as prerrogativas e direitos particulares de cada casta, indo até aos cultos, morais e leis diferentes para cada uma destas articulações tradicionais, faziam não só com que a vontade transcendente se encontrasse em harmonia com uma herança humana apropriada, mas também com que cada um pudesse encontrar no conjunto social um lugar realmente correspondente à sua natureza e às suas atitudes mais profundas: um lugar defendido contra todas as confusões e prevaricações.

1. Cfr. tb. Rep., 580-581, 444 a, b.
2. Rg-Veda, X, 90, 11-12. A divisão em quatro dá lugar à tripartição no caso em que a nobreza foi concebida de maneira a reunir em si, quer o elemento guerreiro, quer o espiritual, e em que subsistiram restos materializados desta situação originária. É a isto que verosimilmente se refere a tripartição nórdica em jarls, karls e traells e a helénica em eupátridas, geómoros e demiurgos, em que a primeira casta pode corresponder aos geleontas segundo o significado antigo de «esplêndidos» que teve o termo.
3. Cfr. Bhagavad-gitâ, XVIII, 41: «Os deveres dos brâhmana, dos guerreiros, dos burgueses e dos servos são distribuídos de acordo com os atributos derivados da [sua] natureza.»
4. Tshung-yung, XIII, 1. É também nestes termos que PLATÃO (Rep., 433 d, 434 c) define o conceito de «justiça».
5. A ideia de que um mesmo princípio pessoal tenha vivido outras existências humanas e de que viverá ainda outras depois da morte, está como nunca sujeita a caução. Sobre este assunto, cfr. R. GUÉNON, L’Erreur Spirite, Paris, 1923, passim, e EVOLA, La dottrina del risveglio, Milão, 1966. Historicamente a ideia da reencarnação só aparece em relação com a visão da vida própria do substrato de raças pré-arianas e com a influência por elas exercida; do ponto de vista da doutrina, é um simples mito para uso das massas, e não um saber «esotérico», mas sim precisamente o contrário. Cfr. mais adiante, II, § 8 b, 9 a. A ideia da reencarnação foi, por exemplo, completamente estranha aos Vedas.
6. PLOTINO, Enn., III, iv, 5; I, i, 11. Cfr. PLATÃO, Rep., X, 617 a: «Não é já um demónio que vos escolherá, mas sois vós mesmos a escolher o vosso demónio. Vós mesmos escolhereis a sorte dessa vida, em que depois vos encontrareis, obrigados pela necessidade.»
7. Cfr. F. CUMONT, Myst. de Mythra, cit., pp. 102-103; PLATÃO, Fedr., X, 15-16; 146-148 b; JULIANO IMP., Helios, 131 b. Porém temos de acrescentar a esta indicação geral que a natureza dos elementos determinantes de um dado nascimento é muito complexa, como é também complexa a dos elementos de que se compõe o ser humano, soma de várias heranças, quando considerado integralmente. Sobre este assunto, cfr. EVOLA, La dottrina del risveglio, cit., pp. 124 e segs.
8. PLOTINO, Enn., III, iii, 17. Como não podemos deter-nos aqui sobre estes ensinamentos, saliente-se apenas que PLOTINO diz que as almas «tomam como residência» nos lugares que lhes correspondem e que não são elas a escolhê-los arbitrariamente segundo a sua vontade: na maior parte dos casos a força das «correspondências» actua nos estados incorpóreos de maneira tão impessoal como nos corpóreos a lei relativa às valências químicas.
9. Em relação a este aspecto particular, cfr. Mânavadharmaçâstra, X, 71: «Tal como uma boa semente que germina num bom terreno se desenvolve perfeitamente, assim também o que nasceu de um bom pai e de uma boa mãe é digno de receber a iniciação… A semente, lançada num solo ingrato, destrói-se sem produzir nada; num bom terreno em que não se tenha deitado nenhuma semente é simplesmente um pedaço de terra estéril e nua».

0 Response to "A doutrina das castas (1/3)"

Powered by Blogger