Recordar Rodrigo Emílio

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Foi numa tarde de Primavera viseense que com ele me cruzei pela primeira vez. Deambulando pela Sé, como fazia com frequência entre furos escolares, parei para uma bica num café de esquina no Largo Pintor Gata, acompanhado do Voyage au Bout de la Nuit do Céline, que acabara de comprar na saudosa Lúmen. Absorto na leitura, nem reparei num vulto que do balcão, porte “nobre e fidalgo”, me olhava curioso. Da altivez dos meus 16 anos mal cumpridos e reconhecendo-lhe o símbolo na lapela, aventurei-me a apresentar-me. Foi assim que conheci o Rodrigo Emílio.
Conversamos o tempo de um café e de três Português Suave sem filtro, que fumou até metade, guardando o restante no maço, e dali saímos para sua casa que era logo ali por trás, no Ado da Sé, em frente à Igreja da Misericórdia. Foram horas de conversa, sentados a uma camilha, com uma enorme fotografia do Léon Degrelle, autografada pelo próprio, como testemunha. Falamos de literatura e poesia, da África Portuguesa e dos dias do fim, da descrença num povo moribundo e no alheamento da juventude, da urgência de um Rei para um país nas urgências, do fado na voz do seu camarada-irmão Zé Campos e Sousa, da família, que por afinidades de casamento ainda se cruzava e da sua Casa de São José, em Parada de Gonta, onde insistiu para o visitar, sempre que quisesse.
Não me fiz rogado. Sozinho, ou na companhia do meu “irmão siamês”, Luís Abel Ferreira, visitei-o muitas vezes, para ouvir as muitas histórias dos tempos de boémia lisboeta, das campanhas de África, da sua poesia e da dos outros, do Portugal enterrado por alturas de Abril, do exílio em Espanha, dos seus amados filhos e dos camaradas de combate. Recordo, entre muitas, uma história deliciosa, em que nos contou a tentativa de entrega na Casa de São José, duma intimação do Tribunal Constitucional a propósito dum julgamento de elementos do MAN e a que respondeu orgulhosamente que constitucional, em sua casa, não entrava nada. Era assim o Rodrigo Emílio. “Com zero a comportamento. E vinte em fidelidade.”
Poeta genial, duma musicalidade extraordinária e duma intensidade ímpar, colocava a alma e o coração em tudo em que se empenhava. Perseguido desde o dia primeiro da revolução dos cravos, em que, tendo recusado colocar na lapela o símbolo revolucionário à entrada na RTP, onde trabalhava, foi considerado (com muito orgulho o imagino) “irrecuperável para a democracia”. Depois disso, foi a recusa dos democratas de serviço em entregar-lhe o prémio de poesia General Casimiro Dantas, com que tinha sido distinguido e que era seu por direito e o caminho do exílio, para fugir aos mandatos de captura em branco, às prisões sem culpa formada, às perseguições da COPCON.
Foi já em Madrid que assistiu à dolorosa amputação do território pátrio, com a entrega das Províncias Ultramarinas aos inimigos da Nação. Depois da morte da sua filha Constança, em 1971, ainda bébé, a morte do país que amava e pelo qual lutara empenhadamente era dor demasiada e que Rodrigo Emílio nunca ultrapassou. Como descreve o seu filho Gonçalo, na introdução do extraordinário www.rodrigoemilio.com “Via a pátria esfacelada, desfeita em pedaços e chorava de revolta, de desespero, de vergonha também…” Depois duns tempos no Brasil e do regresso a Madrid, retorna a Lisboa ingressando por breve período na Rádio Renascença, para de seguida partir para Viseu, onde se estabelece durante anos, primeiro como professor e depois como explicador particular, garantindo assim o tempo necessário para as suas fugas para o refúgio literário em Parada de Gonta.
Foi por esta altura que nos conhecemos, para não mais deixarmos de contactar, embora esporadicamente, quer através das minhas visitas à Casa de São José, quer em alguns encontros em Lisboa, quer ainda em fugazes reuniões monárquicas em que nos cruzámos. Há exactamente 10 anos atrás, no dia 28 de Março de 2004, partiu para junto da sua Constança, deixando mais pobre a pátria que amou desmesuradamente.
“É preciso que se saiba porque
morro
É preciso que se saiba quem me
mata
É preciso que se saiba
Que no forro desta angústia
É da pátria tão-somente que se trata.”

Rodrigo Emílio. Presente!

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