A doutrina das castas (2/3)

Quando o sentido da personalidade não estiver centrado no princípio efémero da individualidade humana, destinada a deixar de si apenas uma «sombra» à sua morte, tudo isto se apresenta de maneira muito clara e natural. É certo que se pode «construir» muito, mas do ponto de vista superior do que sabe que o ruir do organismo conduz ao nada, a «construção» não tem valor quando não prolongar a vontade profunda que é a razão de ser de um determinado nascimento e que não pode ser assim tão facilmente suplantada por uma decisão momentânea e arbitrária, tomada num dado momento da existência terrestre. E, depois de compreendido tudo isto, também se compreende por que razão hoje em dia tenha de desaparecer fatalmente todo o sentido e a necessidade das castas. Enquanto «Eu», o homem moderno com efeito só conhece o que se inicia com o nascimento e que mais ou menos se extingue com a morte. Tudo se reduz ao simples indivíduo humano e toda a recordação do «antes» já desapareceu. Assim desaparece também a possibilidade de tomar contacto com as forças de que é efeito um determinado nascimento, de se ligar de novo a esse elemento não-humano do homem que, estando para aquém do nascimento, está igualmente para além da morte e constitui o «lugar» de tudo o que pode eventualmente ser realizado para além da própria morte e é o principio de uma incomparável segurança. Sendo assim quebrado o ritmo, fechados os contactos, destruídas repentinamente as grandes distâncias, parecem abertas todas as vias e todos os campos se saturam de acções desordenadas, inorgânicas, sem base nem significado profundo, dominadas por motivações na realidade temporais e individuais, por paixões, pelos baixos interesses e pela vaidade. A «Cultura», aqui, já não significa a realização do ser numa atitude séria de adesão e de fidelidade — significa pelo contrário «construir-se». E como são as areias movediças desse nada que é o Eu empírico humano sem nome e sem tradição que servem de base a essa construção, assim avança a pretensão à igualdade, ao direito de se poder ser, em princípio, tudo o que qualquer outro também pode ser e não se reconhece nenhuma diferença mais verdadeira e mais justa que a «conquistada» com o seu próprio esforço e com o próprio «mérito» nos termos de uma ou de outra das extremamente vãs construções intelectuais, morais ou sociais dos últimos tempos. Nestas condições, é natural que fiquem apenas os limites da pior herança física transformados em sinais de impenetráveis significados, suportados pois, ou gozados, como um capricho do destino; é também lógico que a personalidade e hereditariedade sanguínea, a vocação e a função social sejam elementos que se tornam cada vez mais discordantes até atingirem estados de verdadeira e trágica dilaceração interior e exterior e, no plano do direito e da ética, chegarem à destruição qualitativa, ao nivelamento relativo a direitos e deveres iguais, a uma moral social igualitária, que pretende impor-se a todos no mesmo grau e ser válida para todos, com plena indiferença pelas naturezas individuais e pelas diferentes dignidades íntimas. E não tem outro significado o «superamento» das castas e das ordens tradicionais. O indivíduo conquistou toda a sua «liberdade»; e a corrente que o prende não é medida, para que a sua embriaguez e a sua ilusão de marioneta em movimento não conheça limites.
Era bem outra a liberdade que o homem da Tradição conhecia. Consistia não em afastar-se, mas sim em poder juntar-se ao tronco mais profundo da sua própria vontade, que está relacionada com a própria «forma» existencial. Na realidade, o que corresponde ao nascimento e ao elemento físico de um ser, reflecte o que se pode chamar, em sentido geométrico, a resultante das várias forças ou tendências em acção no seu nascimento: ou seja, reflecte a direcção da força mais forte. Nesta força, aliás, podem ter sido arrastadas tendências de menor intensidade, quase veleidades de forças, a que correspondem os dons e as tendências que no plano da consciência individual mais exterior podem entrar em contradição quer com a própria pré-formação orgânica, quer com os deveres da casta e com o ambiente a que se pertence. Estes casos de contradição interna numa organização tradicional constituída de acordo com a lei das castas têm de se considerar excepcionais. Em contrapartida, tornam-se preponderantes numa sociedade que já não conhece castas nem, em geral, corpos sociais distintos, em que nenhuma lei reúne, conserva e aperfeiçoa dons e qualificações para determinadas funções. Encontra-se aqui o caos das possibilidades existenciais e psíquicas, que condena a maioria a um estado de desarmonia e de dilaceração: como se vê acontecer hoje em dia. Sem dúvida, pode ter existido também uma certa margem de indeterminação no homem tradicional, mas que nele servia apenas para salientar o lado activo das duas máximas: «Conhece-te a ti próprio» (com o seu complemento: «Nada de supérfluo») e «Sê tu mesmo», que implicavam uma acção formadora e de organização interna, até à eliminação da referida margem e à actuação da unidade completa de si consigo mesmo. Descobrir precisamente em si mesmo «a dominante» sugerida pela sua própria forma e da própria casta, e querê-la, ou seja, transformá-la num imperativo ético [10] e, além disso, realizá-la «ritualmente» em fidelidade com vista a destruir tudo o que vincula à terra como instinto, motivações hedonistas e avaliações materiais — eis o complemento da concepção acima referida e o que conduz ao segundo fundamento do regime das castas no seu «encerramento» e estabilidade.
Por outro lado, tem de se ter presente também o aspecto do espírito tradicional segundo o qual não existia objecto ou função que se pudesse considerar em si superior ou inferior a outro. A verdadeira diferença correspondia pelo contrário à maneira como era vivido o objecto ou a função. Ao modo terrestre, assente na utilidade ou na cupidez — sâkâma-karma — opunha-se, no exemplo característico oferecido pela Índia ariana, o modo daquele que actua sem se preocupar com os frutos, actuando pela acção em si — nishkâma-karma — fazendo de cada acto um rito e uma «oferenda». Era esta a via da bhakti — termo que aqui corresponde mais ao sentido viril da fides medieval que ao sentido piedoso que prevaleceu na ideia cristã da «devoção». A acção realizada de acordo com este significado de bhakti era comparada a um fogo gerador de luz, em que se consuma e purifica toda a matéria do próprio acto. E a medida em que o acto estava precisamente livre da matéria, destacado da cupidez e da paixão e bastando-se a si mesmo, portanto — para usarmos analogicamente a expressão aristotélica — acto puro — esta medida definia exactamente a hierarquia das actividades, e por consequência das castas ou dos outros corpos a estas correspondentes como «classes funcionais».
Dadas estas premissas, que não eram teóricas mas sim vividas, e portanto frequentemente nem sequer expressas, a aspiração a passar de uma certa forma de actividade a outra, que, do ponto de vista exterior ou utilitário, poderia apresentar-se a alguém como mais digna e vantajosa — e assim a passar de uma casta para outra — só podia ter, no mundo da Tradição, uma força muito escassa, de modo que a hereditariedade das funções se estabelecia espontaneamente mesmo onde não existiam verdadeiras castas, mas apenas grupos sociais. Todas as espécies de funções e de actividades apareciam de igual modo — e somente — como ponto de partida para uma elevação em sentido diferente, vertical, não na ordem temporal mas sim na espiritual. Cada um dentro da sua própria casta, na fidelidade à sua própria casta, na fidelidade à sua própria natureza, na obediência não a uma moral geral, mas sim à sua própria moral, à moral da sua própria casta, sob este aspecto tinha a mesma dignidade e a mesma pureza que outro: um servo — çûdra — valia tanto como um rei. Cada um mantinha a sua função na ordem geral e, por meio da sua bhakti, participava também no princípio sobrenatural desta mesma ordem. Por isso disse-se: «O homem atinge a perfeição adorando Aquele de que provêm todos os viventes e todo este universo é penetrado, por meio da realização do seu próprio modo de ser — svâdharma.» [11] O Deus declara: «Seja qual for o modo em que os homens venham a mim, aceito-os dessa maneira: de todas as formas seguem a minha via» [12] e ainda: «Faz sempre o que deve ser feito, sem anseios, porque o homem que age num desinteresse activo alcança o Supremo.» [13] O conceito de dharma, ou natureza própria, a que se pede portanto que seja fiel [14], provém da raiz dr = suster, levar ou manter em cima, para exprimir precisamente o elemento «ordem», «forma» ou «cosmos» que a Tradição encarna e põe em movimento frente ao caos e ao devir. Através do dharma, o mundo tradicional — tal como, de resto, todas as coisas e todos os seres — sustém-se, as barragens contra o mar da pura contingência e da temporalidade são firmes, os viventes participam na estabilidade [15]. Compreende-se então por que motivo o facto de sair da sua própria casta, bem como a mistura das castas ou apenas dos direitos, dos deveres, das morais e dos cultos de cada uma das castas era considerado um sacrilégio que destrói a eficácia de todos os ritos, e por isso impele o culpado para os «infernos» [16], quer dizer, para a ordem das influências demoníacas da natureza inferior — de modo a fazê-lo tornar-se o único ser «impuro» de toda a hierarquia, um pária, «intocável» por ser um centro de contágio psíquico num sentido de dissolução interior. E é interessante o facto de só o «fora de casta» na Índia ser considerado um excluído, evitado até pela mais baixa das castas, mesmo que tivesse pertencido à mais elevada: enquanto ninguém se sentia humilhado devido à sua própria casta e o próprio çûdra tinha tanto orgulho na sua casta e desejava tanto mantê-la como o brâhmana de mais alta categoria. A ideia da contaminação, nas suas linhas gerais, só se aplicava ao indivíduo de casta superior que se misturasse com o de casta inferior, mas até este último se sentia contaminado com toda a mistura com o indivíduo de casta superior [17]. Na realidade, na mistura de ouro e do chumbo, não é só o primeiro que se altera, mas também o segundo: ambos perdem a sua natureza. Era preciso que cada um fosse ele mesmo. Assim, era a mistura em si própria e não uma determinada mistura que, ao suprimir aquilo a que Goethe chamaria o «limite criador», atentava contra a organização tradicional e abria as portas às forças inferiores. O objectivo era a transfiguração da «forma», obtida através da bhakti e do nishkâma-karma, ou seja, através da acção como rito e como oferenda: a alteração, a destruição da «forma», fosse em que sentido fosse, era considerada pelo contrário só como uma evasão degradante. O fora da casta era simplesmente o vencido — um caído, patitas, como era chamado no Oriente ariano.

10. O único pensador moderno que, aliás sem ter uma consciência precisa disso, se aproximou deste ponto de vista, talvez seja Nietzsche com a sua moral absoluta assente na base «natural» (cfr. R. REININGER, F. Nietzsches Kampf um den Sinn des Lebens, Viena, 1925, e J. EVOLA, Cavalcare la Tigre, cit.).
11. Bhagavad-gitâ, XVIII, 46.
12. Ibid., IV, 11. Cfr. XVII, 3, em que se afirma que a «devoção» de cada um tem de ser conforme à própria natureza.
13. Ibid., III, 19. Cfr. Mânavadharmaçâstra, II, 5 (tb. II, 9): «Cumprindo os deveres prescritos [pela casta] sem visar uma recompensa, o homem alcança a imortalidade».
14. Bhagavad-gitâ, XVIII, 47 (cfr. III, 35): «Mais vale o seu próprio dharma, mesmo que seja imperfeitamente realizado, que o dharma de outro bem executado. O que realiza o seu próprio dharma não incorre em culpa»
15. Cfr. J. WOODROFFE, Skakti and Shâkta, Londres, 1929, p. 700.
16. Cfr. Bhagavad-gitâ, I, 42-44. A propósito do dever de fidelidade à função específica e à moral da sua própria casta, é característico o episódio de Râmâ que mata um servo — çûdra — que se tinha dedicado à ascese, usurpando o direito da casta brahmana. É também notável, em relação à mesma ordem de ideias, o ensinamento de que a «idade do ferro», ou «idade obscura», começará quando os servos praticarem a ascese, e iremos ver que este é precisamente um dos sinais dos nossos tempos, através de certas ideologias plebeias acerca do «trabalho» (que é o dharma do servo) entendido como uma espécie de «ascese».
17. Cfr. BOUGLÉ, Rég. cast., cit., p. 205; M. MÜLLER, Essais de Mythol. comparée, tr. fr., Paris, 1873, p. 404. A ideia da contaminação desaparece, dentro de certos limites, no que se refere às mulheres, susceptíveis de serem tomadas por homens de casta superior, sem que por este facto eles se contaminem. Tradicionalmente, a mulher, com efeito, ligava-se à casta, não tanto de uma maneira directa como através do seu marido, e isto não significava senão um campo, que pode ser mais ou menos, propício, mas que não pode fazer com que a semente que nele se lançar produza uma planta essencialmente de espécie diferente (cfr. sobre este assunto Mânavadharmaçâstra, IX, 35-36, 22: «Sejam quais forem as qualidades de um homem a quem uma mulher esteja legitimamente ligada, esta adquire-as da mesma maneira que a água de um rio ao unir-se ao oceano»). Contudo, tem de se ter presente que isto deixa de ser verdadeiro na medida em que as estruturas existenciais tradicionais vão perdendo a sua força vital.

A doutrina das castas (1/3)

A organização tradicional, enquanto «forma» vitoriosa sobre o caos e encarnação da ideia metafísica da estabilidade e da justiça, teve uma das suas expressões principais no sistema das castas. A separação dos indivíduos em castas, ou grupos equivalentes, em função da sua natureza e da categoria hierárquica das suas actividades em relação à espiritualidade pura, encontra-se com características constantes em todas as formas mais altas de civilização tradicional e constitui a essência da legislação primordial e da ordem de acordo com a justiça. A conformidade à casta surgiu como o primeiro dever que teve a humanidade tradicional.
No seu aspecto mais completo — tal como se apresenta nomeadamente no antigo sistema indo-ariano — a hierarquia das castas corresponde visivelmente à das diversas funções próprias de todo o organismo regido pelo espírito. Neste organismo encontram-se, no limite inferior, as energias ainda indiferenciadas e impessoais da matéria e da simples vitalidade: mas já se exerce sobre elas a acção regular das funções do metabolismo e da economia orgânica em geral, que por sua vez encontram na vontade a força que move e dirige o corpo como um todo no tempo e no espaço. Finalmente, a alma, como centro, poder soberano e luz do organismo inteiro. O mesmo acontece com as castas: as actividades dos servos ou trabalhadores — çûdra — depois as da burguesia — vaiçya — mais acima, a nobreza guerreira — kshatriya — e, finalmente, os expoentes da autoridade e do poder espiritual (os brâhmana, no sentido originário, e os chefes como pontífices) — constituíam uma hierarquia que correspondia precisamente à de todo o organismo de tipo superior.
Era esta a organização indo-ariana, de que é extremamente afim a irânica, articulada nos quatro pishtra dos Senhores do fogo — athreva —, dos guerreiros — rathaestha —, dos chefes de família — vâstriya-fshuyant — e dos servos destinados ao trabalho manual — hûti. Encontra-se um esquema semelhante noutras civilizações, até à Idade Média europeia, que conheceu a divisão em servos, burguesia, nobreza e clero. Na concepção platónica as castas correspondem a poderes da alma e a determinadas virtudes: aos dominadores, άρχοντεζ , aos guerreiros, φυλακεζ ou επικουροί, e aos trabalhadores manuais, δημιουργοί, correspondem assim o espírito, νουζ, e a cabeça, o animus, θυμοειδέζ, e o peito, a faculdade de desejo, έπιθυμητικόυ e a parte inferior do corpo: sexo e nutrição. Assim a ordem e a hierarquia exterior correspondem a uma ordem e a uma hierarquia interior, de acordo com a justiça [1]. Encontra-se igualmente a ideia da correspondência orgânica na conhecida imagem védica da proveniência das várias castas de partes diferentes do corpo do «homem primordial» [2].
As castas, antes de definirem grupos sociais, definiam funções, e modos típicos de ser e de agir. A correspondência das possibilidades naturais fundamentais do indivíduo a uma ou a outra dessas funções determinava a sua pertença à casta correspondente: de modo a poder reconhecer nos deveres próprios da sua casta, naquilo a que esta era tradicionalmente obrigada, a explicação normal da sua própria natureza pessoal [3] — e para além da possibilidade do seu desenvolvimento, o seu carisma no conjunto da ordem «vinda de cima». É por isso que no mundo tradicional o regime das castas surgiu e reinou a título de uma calma instituição natural, assente sobre algo evidente aos olhos de todos, e não sobre a tirania, violências ou, para usar a gíria dos tempos modernos, sobre uma «injustiça social». Reconhecendo a sua própria natureza, o homem tradicional reconhecia também o seu «lugar», a sua função e as justas relações de superioridade ou de inferioridade: daí que se o vaiçya não reconhecesse a autoridade de um kshatríya ou se este não mantivesse com firmeza a sua superioridade em relação ao vaiçya ou ao çûdra — isto era considerado menos como culpa que como ignorância. Na hierarquia não se tratava de uma questão de vontade humana, mas sim de uma lei da natureza: tão impessoal como a que determina que o lugar de um líquido mais leve não possa deixar de ser por cima do de um líquido mais denso, desde que não intervenham causas perturbadoras. Considerava-se como um princípio inabalável o de que «se os homens fizerem uma regra de acção não conforme à sua natureza, não deve ser considerada uma regra de acção» [4].
O que se choca mais com a mentalidade dos modernos no regime das castas é a lei da hereditariedade e a do «encerramento». Parece uma coisa «injusta» que o nascimento vá determinar como uma fatalidade a posição social e o tipo de actividade a que o homem terá de se consagrar e que não deverá abandonar, nem por uma forma de actividade inferior nem sequer por uma superior, sem se tornar um «fora da casta», um pária, de quem todos se afastarão. Mas se nos referirmos à visão tradicional geral da vida, estas dificuldades desaparecem. O encerramento das castas assentava em dois princípios fundamentais.
O primeiro deriva do facto de — como já se disse — o homem tradicional considerar tudo o que é visível e terrestre simplesmente como efeitos de causas de uma ordem superior. Por isso, no aspecto particular que tratamos, o nascer de acordo com este ou aquele nascimento, homem ou mulher, de uma casta ou de outra, de uma raça ou de outra, fornecidos de certos e determinados dotes e disposições, e assim por diante, para ele não era um «acaso», uma circunstância com que não temos nada a ver e que portanto está isenta de preconceitos. Para o homem tradicional tudo isto, pelo contrário, se explicava por uma correspondência à natureza do que o princípio que se tornou o «Eu» humano quis ou foi transcendentalmente, no momento de se lançar num nascimento terrestre. Este é um dos aspectos da doutrina hindu do karma; se não corresponde ao que vulgarmente se entende por reencarnação [5], no entanto implica a ideia genérica de uma pré-existência de causas, e o princípio: «Os herdeiros das acções são os seres. Do ser nasce o re-ser e como for a acção, será também o novo ser.» Por outro lado, doutrinas deste género não foram só correntes no Oriente. Era um ensinamento helenístico não só que «a alma primeiro escolheu o seu próprio demónio e a sua própria vida», mas também que «o corpo foi formado à imagem da alma que encerra» [6]. Segundo certos pontos de vista ario-irânicos, que passaram para a Grécia e depois para Roma, a doutrina da realeza sagrada estava precisamente ligada à concepção de que as almas se orientam por afinidade para um planeta determinado, a que corresponderão as qualidades predominantes e a categoria do nascimento humano — e o rei era considerado domus natus precisamente porque tinha percorrido a linha das influências solares [7]. E para quem gostar das justificações «filosóficas», pode-se recordar que a teoria de Kant e de Schopenhauer sobre o chamado «carácter inteligível» — «carácter noménico», anterior ao mundo fenoménico — remonta a uma ordem de ideias não muito diferente.
Pois bem, dadas estas premissas, se excluirmos portanto a ideia do nascimento como acaso, a doutrina das castas apresenta-se sob uma luz bastante diferente. Plotino ensinava: «O plano geral é um: mas divide-se em partes desiguais, de modo que no seu conjunto existem diferentes regiões, umas melhores, outras menos agradáveis — e as almas, também desiguais, residem em lugares diferentes que convêm às suas próprias diferenças. Assim tudo fica de acordo — e a diferença das situações corresponde à desigualdade das almas.» [8] Pode-se portanto dizer que não é o nascimento que determina a natureza, mas sim a natureza que determina o nascimento; mais precisamente, que se possui um determinado espírito porque se nasceu numa determinada casta, mas ao mesmo tempo nasceu-se numa determinada casta porque — transcendentemente — se tem já um determinado espírito. Daí resulta que a desigualdade das castas, longe de ser artificial, injusta e arbitrária, era apenas o reflexo e a institucionalização de uma desigualdade mais profunda e íntima preexistente. Era uma aplicação superior do princípio: suum cuique.
As castas, na ordem de uma tradição viva, por assim dizer, representavam o «lugar» natural da unidade, cá em baixo, de vontades ou vocações afins; e a transmissão hereditária, regular e fechada, preparava um grupo homogéneo de inclinações propícias — orgânico-vitais e mesmo psíquicas — com vista ao desenvolvimento regular, por parte dos indivíduos, das referidas determinações ou disposições pré-natais no plano da existência humana. O indivíduo não «recebia» a sua natureza da casta — era antes esta que lhe dava o modo de reconhecer ou de «recordar» a sua própria natureza e vontade, oferecendo-lhe ao mesmo tempo uma espécie de património oculto, ligado ao sangue, para o auxiliar a realizar harmoniosamente esta última. Quanto às atribuições, às funções e aos deveres da casta, iam servir de quadro ao desenvolvimento regular das suas possibilidades no conjunto social. Nas castas superiores, a iniciação completava este processo, despertando e suscitando no indivíduo influências já orientadas numa direcção sobrenatural [9]. O jus singulare, ou seja, as prerrogativas e direitos particulares de cada casta, indo até aos cultos, morais e leis diferentes para cada uma destas articulações tradicionais, faziam não só com que a vontade transcendente se encontrasse em harmonia com uma herança humana apropriada, mas também com que cada um pudesse encontrar no conjunto social um lugar realmente correspondente à sua natureza e às suas atitudes mais profundas: um lugar defendido contra todas as confusões e prevaricações.

1. Cfr. tb. Rep., 580-581, 444 a, b.
2. Rg-Veda, X, 90, 11-12. A divisão em quatro dá lugar à tripartição no caso em que a nobreza foi concebida de maneira a reunir em si, quer o elemento guerreiro, quer o espiritual, e em que subsistiram restos materializados desta situação originária. É a isto que verosimilmente se refere a tripartição nórdica em jarls, karls e traells e a helénica em eupátridas, geómoros e demiurgos, em que a primeira casta pode corresponder aos geleontas segundo o significado antigo de «esplêndidos» que teve o termo.
3. Cfr. Bhagavad-gitâ, XVIII, 41: «Os deveres dos brâhmana, dos guerreiros, dos burgueses e dos servos são distribuídos de acordo com os atributos derivados da [sua] natureza.»
4. Tshung-yung, XIII, 1. É também nestes termos que PLATÃO (Rep., 433 d, 434 c) define o conceito de «justiça».
5. A ideia de que um mesmo princípio pessoal tenha vivido outras existências humanas e de que viverá ainda outras depois da morte, está como nunca sujeita a caução. Sobre este assunto, cfr. R. GUÉNON, L’Erreur Spirite, Paris, 1923, passim, e EVOLA, La dottrina del risveglio, Milão, 1966. Historicamente a ideia da reencarnação só aparece em relação com a visão da vida própria do substrato de raças pré-arianas e com a influência por elas exercida; do ponto de vista da doutrina, é um simples mito para uso das massas, e não um saber «esotérico», mas sim precisamente o contrário. Cfr. mais adiante, II, § 8 b, 9 a. A ideia da reencarnação foi, por exemplo, completamente estranha aos Vedas.
6. PLOTINO, Enn., III, iv, 5; I, i, 11. Cfr. PLATÃO, Rep., X, 617 a: «Não é já um demónio que vos escolherá, mas sois vós mesmos a escolher o vosso demónio. Vós mesmos escolhereis a sorte dessa vida, em que depois vos encontrareis, obrigados pela necessidade.»
7. Cfr. F. CUMONT, Myst. de Mythra, cit., pp. 102-103; PLATÃO, Fedr., X, 15-16; 146-148 b; JULIANO IMP., Helios, 131 b. Porém temos de acrescentar a esta indicação geral que a natureza dos elementos determinantes de um dado nascimento é muito complexa, como é também complexa a dos elementos de que se compõe o ser humano, soma de várias heranças, quando considerado integralmente. Sobre este assunto, cfr. EVOLA, La dottrina del risveglio, cit., pp. 124 e segs.
8. PLOTINO, Enn., III, iii, 17. Como não podemos deter-nos aqui sobre estes ensinamentos, saliente-se apenas que PLOTINO diz que as almas «tomam como residência» nos lugares que lhes correspondem e que não são elas a escolhê-los arbitrariamente segundo a sua vontade: na maior parte dos casos a força das «correspondências» actua nos estados incorpóreos de maneira tão impessoal como nos corpóreos a lei relativa às valências químicas.
9. Em relação a este aspecto particular, cfr. Mânavadharmaçâstra, X, 71: «Tal como uma boa semente que germina num bom terreno se desenvolve perfeitamente, assim também o que nasceu de um bom pai e de uma boa mãe é digno de receber a iniciação… A semente, lançada num solo ingrato, destrói-se sem produzir nada; num bom terreno em que não se tenha deitado nenhuma semente é simplesmente um pedaço de terra estéril e nua».

Ainda sobre Codreanu

Já Codreanu, nascido em 1899 (mais velho que José António apenas 4 anos), parece ter tomado consciência da necessidade do combate político mais cedo, talvez por influência familiar (seu pai, Ion Zelea Codreanu, era um destacado militante nacionalista). Em 1916, quando a Roménia entrou na I Guerra Mundial, o jovem Codreanu, apesar de não ter idade suficiente, tentou alistar-se. Não o podendo fazer, fugiu de casa para se juntar a seu pai na frente de combate.
Em 1919 muda-se para Iasi, para prosseguir os seus estudos universitários de direito. É aí que conhece o professor Cuza, destacado intelectual nacionalista, com o qual viria a fundar mais tarde, em 1923, a Liga de Defesa Nacional Cristã. É também aqui que, pela primeira vez, toma contacto directo com a subversão judeo-bolchevique. No final desse ano de 1919 junta-se à Guarda da Consciência Nacional, uma efémera organização nacionalista dirigida pelo operário Constantin Pancu. É no seio deste grupo que nasce a ideia de um “socialismo nacional cristão”. Segundo Codreanu: “Não basta derrotar o comunismo. Temos de combater pelos direitos dos trabalhadores. Eles têm direito ao pão e à honra. Temos de lutar contra os partidos oligárquicos, criando organizações nacionais de trabalhadores que possam obter os seus direitos no seio do Estado e não contra o Estado”.
Codreanu descreve-nos assim o início da sua actividade política: “Não sou capaz de definir como entrei na luta. Provavelmente como um homem que, caminhando pela rua, com as suas preocupações, as suas necessidades e os seus pensamentos, sendo surpreendido pelo fogo que consome uma casa, tira o seu casaco e corre a ajudar as vítimas das chamas. Com o senso comum de um jovem de vinte e poucos anos, a única coisa que podia compreender em tudo o que via à minha volta, era que estávamos a perder a Pátria, que não teríamos mais uma Pátria, que, com o apoio inconsciente dos miseráveis, os empobrecidos e explorados trabalhadores romenos, a horda judaica nos varreria. Comecei com um impulso do meu coração, com esse instinto de defesa que até o mais baixo verme possui, não com o instinto de auto-preservação, mas de defesa da raça à qual pertenço.”
Em 1922 participa na fundação da Associação de Estudantes Cristãos. Nesse mesmo ano muda-se para a Alemanha, para prosseguir os seus estudos, inscrevendo-se na Universidade de Berlim. É aqui que ouve falar pela primeira vez de Adolf Hitler e do nacional-socialismo. No entanto, no final desse ano, a 10 de Dezembro, os estudantes romenos entram em greve, exigindo melhores condições de vida, mas também a imposição do numerus clausus, visando limitar a presença judaica nas universidades; Codreanu apressa-se a regressar ao seu país para participar no movimento. Durante esta greve Codreanu convence-se que a altura é propícia à criação de um movimento de base mais ampla, e não apenas estudantil, o que o leva a fundar, em 1923, juntamente com o professor Cuza a Liga de Defesa Nacional Cristã.
Infelizmente a Liga parece estagnar e perder-se em disputas internas. Quando em 1927 Codreanu regressa de Grenoble, onde prosseguiu os seus estudos, decide começar de novo, fundando, a 24 de Junho de 1927, juntamente com alguns camaradas enrijecidos pelas inúmeras passagens que já todos tinham pelas cadeias romenas, a Legião de São Miguel Arcanjo. Nasce assim o Movimento Legionário, que mais tarde seria também conhecido pelo nome de Guarda de Ferro.
A década seguinte será marcada por sucessos eleitorais e por um clima de extrema violência política e arbitrariedade de parte a parte. A cada golpe infligido pelo regime político romeno, a cada arbitrariedade e violência, a Legião não hesita em responder na mesma moeda; os assassinatos e atentados sucedem-se. Tornar-se-ia fastidioso enumerar aqui todos os episódios de violência que ocorreram neste período… De qualquer maneira, aquilo que verdadeiramente nos interessa é a doutrina legionária, e não tanto as vicissitudes do seu combate.
Codreanu deixou alguns livros em que expõe a sua doutrina. De entre eles destacaremos os livros “Guarda de Ferro” e “Manual do Chefe”. O primeiro consiste numa autobiografia e história do Movimento Legionário, expondo simultaneamente a doutrina legionária. O segundo é, como o nome indica, um manual para todos os chefes de “cuib” (literalmente, ninho; o “cuib” era a célula base do Movimento Legionário); por entre indicações meramente práticas, como o tamanho dos estandartes ou as informações a incluir num relatório, encontramos também a exposição dos princípios legionários. E que princípios são esses? O melhor é deixarmos o próprio Codreanu falar: “O homem compõe-se de um organismo, ou seja, de uma forma organizada, depois de forças vitais, depois de uma alma. Podemos dizer o mesmo de um povo. E a construção nacional de um Estado, se bem que abranja naturalmente estes três elementos, por razões de vária ordem e diferentes heranças, pode sobretudo assumir especialmente um ou outro destes aspectos. (…) Daí vem o carácter dos diferentes movimentos nacionais, que, ao fim e ao cabo, compreendem os três elementos e não deixam nenhum de lado. O carácter específico do nosso movimento vem-nos de uma antiga herança. Já Heródoto chamava aos nossos pais “os Dácios Imortais”. Os nossos ancestrais geto-trácios tinham fé, inclusivamente antes do cristianismo, na imortalidade e indestrutibilidade da alma, o que prova a sua orientação em direcção à espiritualidade. A colonização romana acrescentou a este elemento o espírito romano de organização e de forma. (…) E é esta herança que o movimento legionário quer despertar (…) Partindo do espírito, quer criar um homem espiritualmente novo. Realizando esta tarefa enquanto “movimento”, aguarda-nos o despertar da segunda herança ou seja, a força romana politicamente formadora. Assim, o espírito e a religião são, para nós, o ponto de partida, o “nacionalismo construtivo” é o ponto de chegada, uma simples consequência. A ética simultaneamente ascética e heróica da Guarda de Ferro consiste em reunir um e outro ponto”.
Aqui está, resumida pelo próprio Codreanu, a doutrina legionária. Deixemo-lo falar mais uma vez, apenas para reforçar a ideia central do seu movimento: “Este país morre por falta de homens, não por falta de programas… Por outras palavras, o que precisamos não são programas, mas homens, homens novos.”

As seis leis legionárias

I - A LEI DA DISCIPLINA: Sê legionário disciplinado, que só deste modo sairás vitorioso. Segue ao teu chefe na boa como na má fortuna.
II - A LEI DO TRABALHO: Trabalha. Trabalha cada dia. Trabalha com amor. Que a recompensa do trabalho não seja a ganância e sim a satisfação de ter posto um tijolo para glória da Legião e do florescimento da pátria.
III - A LEI DO SILÊNCIO: Fala pouco. Fala quando seja necessário. Quanto seja necessário. Tua oratória é a oratória da acção. Tua obra, deixa que sejam os outros que a comentem.
IV - A LEI DA EDUCAÇÃO: Deves converter-te em outro. Em herói. Faz toda a tua escola no cuib. Conhece bem a Legião.
V - A LEI DA AJUDA RECÍPROCA: Ajuda o irmão a quem tenha ocorrido uma desgraça. Não o abandones.
VI - A LEI DA HONRA: Caminha somente pela via da honra. Luta e nunca sejas vil. Deixa aos outros as vias da infâmia. Antes que vencer por meio de uma infâmia, melhor cair lutando sobre o caminho da honra.

Para que não haja dúvidas

Ser de Direita
Julius Evola

Direita e esquerda são designações que se referem a uma sociedade política em crise. Nos regimes tradicionais as mesmas eram inexistentes, pelo menos se entendidas no seu actual significado. Nestes regimes podia existir uma oposição, se bem que não revolucionária, isto é, que pusesse em cheque o sistema, mas sim lealista e de algum modo funcional: assim, em Inglaterra, podia-se falar de uma His Majesty’s most loyal opposition, ou seja, de uma “lealíssima oposição a sua majestade”. As coisas mudaram logo que apareceram os movimentos subversivos nos tempos mais recentes, e sabe-se que na sua origem a Esquerda e a Direita se definem com base no lugar ocupado respectivamente no parlamento por parte dos partidos opostos.
Dependendo dos planos, a Direita assume significados diferentes. Existe uma Direita económica de base capitalista não privada de legitimação desde que não prevarique e a sua antítese seja o socialismo e o marxismo.
Quanto a uma Direita política, a mesma em rigor adquire o seu pleno significado se existir uma monarquia num Estado orgânico, tal como sucedeu sobretudo na Europa central, mas também em parte na Inglaterra conservadora.
Mas pode-se também prescindir de pressupostos institucionais e falar de uma Direita nos termos de uma orientação espiritual e de uma concepção do mundo. Então, ser de Direita significa, além de estar contra a democracia e contra todas as mitologias socialistas, defender os valores da Tradição como valores espirituais, aristocráticos e guerreiros (de outra maneira, também com referência a uma severa tradição militar, como aconteceu, por exemplo, com o prussianismo). Significa, além disso, alimentar um certo desprezo face ao intelectualismo e em relação ao fetichismo burguês do “homem culto” (o expoente de uma antiga família piemontesa teve ocasião de dizer em forma paradoxal: “Eu divido o nosso mundo em duas classes: a nobreza e os que têm um diploma” e Ernest Jünger valorizou o antídoto constituído por um “são analfabetismo”).
Ser de Direita significa também ser conservador, ainda que não num sentido estático. O pressuposto óbvio é que exista algo subsistente digno de ser conservado, o qual sem embargo nos coloca frente a um difícil problema no momento em que nos referimos àquilo que constituiu o passado recente de Itália logo após a sua unificação: a Itália oitocentista não nos deixou com certeza uma herança de valores superiores a ser tutelados, aptos para servir de fundamento. Também, recuando mais na história italiana, encontram-se apenas esporádicas posturas de direita; faltou uma força unitária formativa tal como existira noutras nações, desde tempos convertida em firme e sólida por parte de antigas tradições monárquicas de uma elite aristocrática.
De qualquer modo, ao afirmar que uma Direita não deve ser caracterizada por um conservadorismo estático quer-se dizer que devem, isso sim, existir certos valores ou certas ideias-base operando como um firme terreno, e que aos mesmos se devem dar diferentes expressões, adequadas ao desenvolvimento dos tempos, para não se ser ultrapassado, para retomar, controlar e incorporar tudo aquilo que se vai manifestando à medida que as situações variam. Este é o único sentido no qual um homem de Direita pode conceber o “progresso”; não se trata de simples movimento para a frente, como demasiadas vezes se pensa, sobretudo entre as esquerdas; de uma “fuga para a frente” pôde falar a este respeito com razão Bernanos (“où fuyez-vous en avante, imbécils?”). O “progressismo” é uma quimera estranha a toda a posição de direita. Também o é porque numa consideração geral do curso da história, com referência aos valores espirituais, não aos materiais, às conquistas técnicas, etc., o homem de Direita é levado a reconhecer uma descida, não um progresso e uma verdadeira subida. Os desenvolvimentos da sociedade actual não podem senão confirmar esta convicção.
As posturas de uma Direita são necessariamente anti-societárias, anti-plebeias e aristocráticas; de tal modo que a contraparte de tudo isto será a afirmação do ideal de um Estado bem estruturado, orgânico, hierárquico, regido por um princípio de autoridade. A este último respeito deparamo-nos, no entanto, com dificuldades em definir qual a base de fundamentação de tal princípio. É óbvio que o mesmo não pode vir de baixo, do demos, o qual, apesar do que manifestam os mazzinianos de ontem e de hoje, não expressa a vox Dei, mas o seu exacto contrário. E devem excluir-se também as soluções ditatoriais e “bonapartistas”, as quais podem valer tão só transitoriamente, em situações de emergência e em termos contingentes e conjunturais.
Vemo-nos novamente obrigados a referirmo-nos a uma continuidade dinástica, sempre e quando, considerando um regime monárquico, se tenha ao menos em vista o que foi denominado como o “constitucionalismo autoritário”, ou seja, um poder não puramente representativo, mas também activo e regulador, sobre o plano daquele “decisionismo” do qual já falaram De Maistre e Donoso Cortés, com referência a decisões que constituem a extrema instância, com todas as responsabilidades que se lhe vinculam e que são assumidas em pessoa, quando nos encontramos ante a necessidade de uma intervenção directa porque a ordem existente entrou em crise ou novas forças surgem sobre a cena política. No entanto, repetimos que a recusa nestes termos de um “conservadorismo estático” não se refere ao plano dos princípios. Para o homem de Direita são os princípios o que sempre constitui a base da sua acção, a terra firme ante a mutação e a contingência, e aqui a “contra-revolução” deve valer como uma consigna muito precisa. Se se quiser, podemo-nos referir à fórmula, tão-só em aparência paradoxal, de uma “revolução conservadora”. A mesma concerne a todas as iniciativas que se impõem para a remoção de situações negativas fácticas, necessárias para uma restauração, para uma assumpção adequada daquilo que possui um valor intrínseco e que não pode ser objecto de discussão. Com efeito, em condições de crise e de subversão, pode dizer-se que nada tem um carácter tão revolucionário como a sustentação de tais valores. Um antigo dito é usu vetera novant, ou seja, os antigos costumes renovam, e isso põe em evidência o mesmo contexto: a renovação que pode ser realizada pela assumpção do “antigo”, diga-se da herança imutável e tradicional.
Com isto cremos que as posições próprias do homem de Direita ficam esclarecidas de forma suficiente.

Ao serviço do Sistema

(via O Fogo da Vontade)

Na segunda-feira da semana que passou vi num dos telejornais uma reportagem sobre o crescimento dos movimentos ditos “racistas” nos EUA.

Este tema está na ordem do dia porque é parte essencial da construção e da mistificação da imagem romântica do presidente Obama, enquanto herói que vem mudar a humanidade e que, na sua missão, se encontra perigosamente acossado pelos ímpios.

Vejo desfilar na reportagem um conjunto de indivíduos supostamente representando esses tais movimentos…muito tatuados, alguns com piercings, cabeças rapadas ou estranhos cortes de cabelo, um discurso brutificado, locais algo sujos e umas suásticas à mistura, pousam sorridentes para a caricatura que deles fazem os tais Média que eles próprios criticam. São a imagem acabada dos desintegrados sociais, talvez mais do que os pretos que eles abominam.

Vejo as reacções de repugnância das pessoas que estão ao meu lado… aquela estética física,aquela linguagem, aquela imagem…as pessoas não se reconhecem naquilo, naquelas aparências, naqueles corpos, naquelas roupas…não conseguem imaginar que se pudessem alguma vez apresentar assim, não sentem aqueles indivíduos como parte da sua gente, olham para aquilo e não revêem o que lhes é familiar: o comerciante, o agricultor, o arquitecto, o pescador, o médico, o colega, o vizinho…

Quando vejo aqueles personagens a desfraldar bandeiras com suásticas não vejo que o Nacional-Socialismo tenha afinal sobrevivido, pelo contrário, vejo a sua derrota total, a sua completa inversão, porque aquelas pessoas são o exacto oposto do que o Nacional-Socialismo propugnava: uma ética e uma estética de exigência, de conquista, de selecção dos melhores, de superação humana, de procura da grandiosidade! Ao invés, naquela gente tudo aponta para baixo, são a imagem acabada da mediania, do mau-gosto, da incapacidade. Eles são os primeiros a desconhecer o que representaram as bandeiras que usam…

Se aquilo fosse exemplificativo da nossa raça seríamos os primeiros a não encontrar nada digno de defender ou preservar… a superior beleza das nossas mulheres, a superior inteligência dos nossos povos, a superior capacidade técnica, a superior produção artística e a superior organização social das nossas sociedades não encontram ali qualquer reflexo.

Como é que gente que parece inapta na sua vida individual pretende falar em nome de um movimento que aspirou à maior revolução colectiva da história da Europa?

A derrota do Nacional-Socialismo foi de tal dimensão que, no final da segunda guerra, essa expressão política perdeu toda a voz pública. Sem possibilidade de apresentar a sua versão da História, sem ninguém que falasse em seu nome, o Nacional-Socialismo foi transformado na imagem do Mal Absoluto por aqueles que, saindo vencedores do conflito, reescreveram a História a seu bel-prazer.

Ora, a imagem do Mal Absoluto é particularmente propensa a atrair aquele género de tipos que, incapazes de se enquadrarem minimamente na sociedade, por força das suas próprias limitações, tendem a pretender passar a ideia de que a rejeitaram propositadamente. E é isso que explica a existência de muitas sub-culturas modernas cujos membros pretendem chocar a sociedade ao aderir ao que esta proibiu ou rejeitou.

Se as elites militares e intelectuais do Terceiro Reich regressassem à vida neste tempo e fossem confrontadas com aqueles indivíduos veriam o rosto da sua derrota e do triunfo das mesmas forças subversivas que tentaram combater.

Eram quarenta e sete ronins

A época solitária do «Japão proibido» dos Tokugawa é um período apagado, uma crónica sem feitos de relevo.
Os daimios, reprimidos e explorados, acham-se numa situação financeira precária; as cobranças fiscais são mais do que aleatórias. A entrada em circulação do papel-moeda suscita uma inflação de tal ordem que se torna necessário proibir essa prática em 1707. No entanto, o xógum vive sumptuosamente. A partir de 1730, todos os senhores se tornam dependentes dos mercadores – usurários de Osaca, que lhes deixam apenas o bastante para vegetarem. O Governo é obrigado a decretar regularmente a anulação das dívidas.
Os grandes daimios continuam a sustentar um número mais ou menos elevado de samurais; todos eles constituem uma classe improdutiva e inactiva desde que reina a paz dos Tokugawa. Vivem quase exclusivamente do trabalho dos camponeses e quase todos levam uma vida luxuosa, geralmente acima dos seus meios.
A população do Império aumenta pouco a pouco e o afluxo dos camponeses às cidades perturba os dados económicos do país. Burgueses e comerciantes acumulam rapidamente fortunas consideráveis e adquirem um poder que escapa pouco a pouco à nobreza.
O bakufu tenta remediar a este estado de coisas por meio de leis sumptuárias e confiscações; mas nada consegue deter a ascensão dos burgueses. Ora, estes desejam a abertura do país aos estrangeiros, para ampliarem o seu comércio, de acordo nesse ponto com os grandes daimios, que vêem nisso um meio de aumentar os seus recursos.
Os costumes também evoluem: depois dos primeiros esforços dos Tokugawa para lutar contra a devassidão provocada pelas guerras civis, os costumes voltam a ser simples, austeros até, e regem-se pelo Bushidô. Depressa, porém, os xóguns, os grandes senhores e, em breve, toda a classe dirigente, adquirem hábitos de magnificência e luxo.
As classes fundem-se; o guerreiro torna-se agricultor, o comerciante torna-se guerreiro, o camponês torna-se comerciante; mas são sobretudo os samurais e os burgueses que se interpenetram: em tempo de paz, os aristocratas pobres procuram sempre casar com plebeias ricas!
A época do «esplêndido isolamento» é um período de vida elegante em que a mais sórdida miséria acompanha o luxo mais despropositado. Quioto, capital do imperador divino, não passa já de uma cidade nostálgica do seu passado, consagrada ao culto das artes delicadas e aos ritos imperiais. O imperador não interfere, por assim dizer, no curso dos acontecimentos.
Edo, que se tornará Tóquio, é a cabeça enorme de um corpo demasiado pequeno; capital desproporcionada, conta dois milhões de habitantes, enquanto Paris não ultrapassa os quinhentos mil. O Palácio dos Xóguns é o Versalhes do Japão. Por detrás deste brilhante cenário, Yoshiwara é o mais bem organizado dos bairros reservados. Os ricos comerciantes organizam aí faustosas festas, alegradas e embelezadas pela presença das gueixas, cantadeiras profissionais.
Os trajes evoluíram um pouco: generaliza-se o uso do quimono. Se os samurais continuam a usar o traje tradicional – armadura «de coleóptero» ou toga, calças e túnica com ombros engomados –, os daimios tendem a feminizar-se; quer no modo de vida – eliminando os desportos viris –, quer no vestuário, que se torna mais cómodo e macio.
Politicamente, socialmente, economicamente, o Japão está em plena decadência. No entanto, possui tudo o que precisa para suplantar o seu drama.
O espírito dos antigos samurais não morreu.
Uma maravilhosa e sangrenta aventura vai para sempre simbolizar a perenidade da lei e da honra.
Nos primeiros dias do mês de Março de 1701, o imperador Higashiyama enviou para junto do xógum Tokugawa Tsunayoshi, em Edo, três embaixadores: dois para o representarem pessoalmente e um outro em nome do ex-imperador retirado, Reigen.
Para os receber, o xógum nomeara dois grandes senhores, um dos quais, Asano Naganori, daimio do castelo de Akô, fora encarregado de dirigir as cerimónias. Asano tinha a princípio recusado essa honra, alegando a sua ignorância da etiqueta da corte. Mas, instado pelos outros fidalgos, acabara por aceitar, com a condição expressa de ser aconselhado pelo mestre-de-cerimónias da época, um velho chamado Kira Yoshihisa. O assunto era da maior importância para Asano; a missão mais importante de toda a sua vida, sem dúvida.
Fazia, com efeito, parte dos costumes da época, de Edo, que, no princípio de cada ano, o governador de Quioto se deslocasse ao Palácio Imperial a fim de apresentar ao imperador e à sua família os votos do xógum residente em Edo. Era em retribuição desta visita que, nos primeiros dias da Primavera, o imperador enviava, por sua vez, à corte xogunal, emissários encarregados de transmitir ao xógum a expressão da sua confiança. Este tributo de respeito anual assumia aspectos de uma renovação de investidura e fornecia sempre oportunidade para uma cerimónia grandiosa, à qual o xógum procurava emprestar o maior esplendor, pois mostrava ao povo que o imperador continuava a dar-lhe o seu apoio.
Na realidade, o xógum detinha todos os poderes e toda a autoridade. A sua ditadura era sólida e incontestada. O imperador, encerrado em Quioto, revestido do seu mandato celeste, descendente do deus Sol, exercia unicamente a autoridade religiosa nominal que lhe conferia a sua dignidade. Se reinava deste modo, sem governar, não era menos uma personagem sagrada aos olhos do povo, que via nele um guardião das tradições, o ser semidivino que detinha nas suas mãos o destino do país. Sem a sua investidura, extorquida outrora pela força, o xógum teria sido um usurpador…
Convinha, portanto, a Asano desempenhar na perfeição o seu papel honorífico durante as recepções dos dias 12 e 13 de Março. Era um assunto de Estado e sobretudo uma questão de honra.
Kira Yoshihisa, velho cortesão venal, exigia sempre dos que o solicitavam sumptuosos presentes. Era costume da época obsequiar os funcionários a quem se pedia um favor. Os presentes variavam consoante a fortuna de quem pedia os favores.
Mas Asano Naganori não pensava da mesma maneira. Educado nos princípios confucianos de rectidão e dignidade, condenava uma prática que corrompia os servidores do Estado. Por isso, embora o aconselhassem a espalhar ouro em profusão sobre os joelhos de Kira, limitou-se a oferecer os presentes que o uso oficial consagrara, não querendo de modo algum sair da sua linha de conduta.
Asano ignorava os costumes de Edo e a mentalidade corrompida dos grandes da época. Sustentava assim que fazia parte dos deveres de Kira, na sua qualidade de chefe do protocolo, ensinar-lhe as regras da etiqueta e que seria desonroso dar-lhe presentes fora de proporção com a sua tarefa.
Kira, velho finório, sabia que Asano era rico. Soubera que a província deste lhe rendia, anualmente, 53500 koku (alqueires) de arroz e que possuía também o segredo de uma próspera indústria de tratamento do sal.
— Como – vociferou, encolerizado, ao receber os poucos e simbólicos presentes do daimio de Akô –, é isto tudo o que ele me dá?! Já que é assim, não o ajudarei com qualquer conselho, mesmo que isso lhe custe a perda da honra!
O chefe do protocolo possuía um património que lhe proporcionava apenas uma renda anual de 4200 alqueires de arroz, mas levava uma vida de grande senhor na corte xogunal, o que o obrigava a exigir retribuição por todos os serviços prestados, por mais insignificantes que estes fossem.
Um tal mal-entendido iria provocar um drama sangrento.
No dia 12 de Março, de manhã, os enviados imperiais foram recebidos em audiência privada pelo xógum e, no dia seguinte, realizou-se um banquete em sua honra, seguido de espectáculos de Nó e de Kyogen.
Enquanto isso, não tendo conseguido falar com o conselheiro Kira, livrara-se de apuros como pudera, sem fazer, no entanto, muito má figura, pois não tivera que comparecer pessoalmente. No dia seguinte, porém, o xógum dava a sua grande recepção aos enviados imperiais, recepção que era ao mesmo tempo a festa de despedida, e Asano teve de tomar o seu lugar entre os primeiros. Ora, o daimio não estava muito seguro nem do que devia fazer, nem do lugar que devia ocupar.
Vagueava pelos corredores, roído pela angústia, quando de repente viu Kira, que saltitava à sua frente, com as mãos dentro das mangas, como um mandarim chinês, um enigmático sorriso nos lábios. Asano dirigiu-se-lhe em tom irritado:
— O que é que deverei fazer daqui a pouco, diga-me depressa!
— Devia ter-se preocupado com isso antes – retorquiu calmamente o velhote –, agora não tenho tempo.
E voltou-lhe as costas, deixando Asano confundido e furioso. Talvez as coisas tivessem ficado por aí, se Kira não tivesse murmurado enquanto se afastava:
— Um bom remédio é sempre amargo!
Era um insulto.
Asano, louco de raiva, puxa então pelo sabre e corta a túnica de seda do cortesão com um golpe tão subtil que o outro fica nu, repentinamente, sem que a pele sofresse a menor beliscadura. O mestre-de-cerimónias berra como um cão chicoteado. Asano ri silenciosamente e diz, em tom de escárnio:
— Lembrar-te-ás disto!
Mas Kira vocifera, envolto nos restos da sua túnica de seda:
— É um louco, um labrego, um selvagem! Acudam-me!
Desta vez, a lâmina corta no sentido horizontal. Sempre com a máxima precisão, Asano, que sabe como fazer voar uma cabeça, visou apenas a boca aberta de onde saem as injúrias que o ferem e alarga-a até às extremidades das maxilas num sorriso sangrento. Kira engole e cospe borbotões de sangue, que o sufocam. Acorrem entretanto alguns espectadores que conseguem dominar Asano, com medo que este mate o velho. O daimio tranquiliza-os, porém, com um provérbio:
— Se odeias o teu inimigo, deixa-o viver!
Kira é levado, coberto de sangue, para fora do palácio xogunal.
Quando o xógum Tsunayoshi, que tomava o seu banho, sabe do caso, fica vermelho de cólera. Em primeiro lugar nomeia outro funcionário para substituir Asano, depois dá ordens para que a cerimónia se desenrole noutra parte do palácio, visto aquela ter ficado conspurcada pelo sangue de Kira.
Na sua raiva, o xógum queria castigar imediatamente Asano e foi com grande custo que os conselheiros o conseguiram convencer a adiar a solução deste caso infeliz para depois da partida dos emissários imperiais.
Durante a tarde, Asano, posto sob residência vigiada em casa de um nobre de nome Tamura, recebeu a visita de dois juízes, que lhe anunciaram a decisão de o xógum o ter condenado a suicidar-se por abertura do ventre.
Asano Naganori escreveu então um poema de adeus, em que falava dos seus 36 anos dispersos, como pétalas de flores não totalmente abertas; depois, com mão firme, abriu o ventre da esquerda para a direita como um verdadeiro samurai, enquanto um assistente lhe cortava a cabeça com um único golpe de sabre.
O xógum confiscou as duas casas que Asano possuía em Edo, assim como a sua propriedade de Akô.
Quando um mensageiro, coberto de poeira, transpôs a ponte levadiça do castelo feudal, os trezentos guerreiros do senhor caído em desgraça estavam reunidos e já conheciam a má nova. A notícia da morte do seu senhor espalhara-se rapidamente num perímetro de 600 km.
O enviado do xógum, um homem de boas famílias, não pestanejou, apesar de esperar a todo o momento ser cortado em dois por aqueles que de um momento para o outro se tornariam ronins, aventureiros armados, soldados perdidos sem protecção e sem recursos. Desenrolou o manuscrito e leu-o de uma só vez, de pé sobre os estribos, como um arauto. Então, para sua estupefacção, os samurais abandonaram lentamente o recinto e afastaram -se.
Durante a noite anterior, à luz dançante de uma grande fogueira ateada ao pé do torreão, os guerreiros tinham discutido o problema. Dois partidos opunham-se: aqueles que aceitavam o inevitável e se inclinavam perante a vontade do xógum – o próprio irmão de Asano não aconselhava a submissão? – e os outros, cujo porta-voz era Oishi Kuranosuke.
— O quê – salmodiava com voz sonora –, morto Asano, não aceitaria o xógum que o próprio irmão aqui presente lhe sucedesse no comando do castelo? Terão os Naganori caído para sempre em desgraça? E nós, seus fiéis guerreiros, seus homens de confiança, iremos por esses caminhos, esquecendo o mais sagrado dos deveres?
Oishi fala durante muito tempo. As chamas dançam-lhe sobre a face, tragicamente branca. Ele soube encontrar a ênfase dos antigos samurais e faz vibrar o espinho dos imperturbáveis companheiros. À medida que escutam as suas palavras inspiradas, o sangue corre-lhes mais depressa e mais quente nas veias e crispam os punhos sobre o cabo dos sabres.
No final do seu exórdio, um galo cantou, anunciando a madrugada. Sem procederem a votação, sem se consultarem, cinquenta guerreiros desembainharam o sabre e ficaram durante um longo momento imóveis, diante do fogo, segurando no punho um relâmpago vermelho.
Foi no dia 18 de Abril que as tropas xogunais vieram tomar posse do castelo de Akô. Os samurais tinham-se dispersado sem oferecer a menor resistência. O novo senhor da província de Iga, de nome de Nagai, cavalgava na retaguarda dos seus homens, um falcão pousado na luva. Os camponeses, indiferentes, miravam-no à passagem. Não lhes interessavam qual o nobre que reinasse no castelo; teriam de trabalhar à mesma e de pagar os mesmos impostos…
Kira Yoshihisa consulta mais uma vez o espelho e geme. Sob a pintura, a atroz ferida dá-lhe ainda o ar de um kami maléfico.
Afasta a imagem cruel e esconde-se de novo por detrás do leque aberto. Um dos seus samurais, acocorado e desviando pudicamente o olhar, aguarda as suas perguntas.
— Dizias tu que são apenas quarenta e sete…
— Ainda ontem eram quarenta e oito, senhor, mas assisti a uma discussão numa taberna onde o seu chefe, Oishi, se embriagou. Um tal Murakami Kiken, antigo samurai de Asano, também ficou igualmente ébrio. Plantou-se em frente de Oishi, que bebia na companhia de umas gueixas inteiramente despidas: «Cobarde – disse-lhe –, esqueceste o nosso juramento!» Primeiro pensei que Oishi ia puxar pelo sabre, pois as mãos tremiam-lhe de raiva contida. Mas pôs-se a rir: estava cheio de saqué. «Junta-te a nós para rirmos um bocado, bom companheiro», disse para o que o insultara… É uma coisa insuportável ignorar uma injúria daquelas. Fiquei enjoado… Consegui tirar-lhe o sabre para fora da bainha: a lâmina estava toda ferrugenta.
— E se fosse uma armadilha para desviar a nossa atenção?
— Nesse caso Oishi seria um herói – responde irreflectidamente o samurai de Kira.
— Mantém-te alerta – corta secamente o seu amo. — Vai-te e mantém-te alerta.
Passaram meses.
Uma noite de Dezembro de 1702, um dos ronins, Hara, deslocou-se a casa de sua mãe, onde também moravam a jovem esposa e o filho. As duas mulheres alegraram-se com a inesperada visita.
— Hara – diz-lhe a mãe – estou feliz por voltar a ver-te. Não te demores em cumprimentos, limpa os pés e entra sem cerimónias.
Descalça as sandálias de palhas, põe de lado o grande chapéu de viagem e depois entra em casa, seguido pela mulher, que traz a criança ao colo.
A velha mãe não pode calar o seu coração:
— A tua presença enche-me de alegria. Durante a tua ausência, a tua admirável esposa foi como uma filha para mim; vê como cresceu o teu querido Fusabô! Já anda e já diz algumas palavras…
Nisto chega o irmão mais novo do cavaleiro Hara e toda a família se reúne numa pequena festa, para celebrar o feliz regresso do chefe.
— Venerável mãe – diz este último –, penso que encontrei um lugar junto de um príncipe de Kantô que deseja que eu entre ao seu serviço, o que restabelecerá a nossa fortuna. Eis a razão por que me dirijo para Edo. Vim comunicar-vos esta boa nova e despedir-me.
A venerável mulher olha então fixamente o filho mais velho.
— Meu filho – diz-lhe –, estou feliz por saber esta notícia. Mas tenho o orgulho de uma mãe de samurai e gostaria de conhecer a verdadeira razão desta tua viagem…
Hara inclina a cabeça até tocar a esteira, para ocultar a vermelhidão do rosto.
No dia seguinte, bem cedo, o samurai parte apressadamente para não se emocionar com as despedidas. Por volta do meio-dia, faz uma paragem junto de uma árvore e abre o bornal, onde descobre alguns bolos de arroz que a mãe confeccionara. Corta um bocado, que ergue respeitosamente à altura da fronte antes de começar a refeição. Quando já só resta um bolo no fundo do bornal, levanta os olhos e depara com alguns pombos pousados num dos ramos da árvore. Espalha então as migalhas do almoço para que eles as venham comer e observa. As aves cantam durante um momento para avisarem os filhos, a quem deixam todas as migalhas, sem comerem uma só…
«Mas afinal, os seres humanos terão lições a receber dos passarinhos em matéria de amor familiar? Se vou a Edo, é para morrer, quer seja em combate, quer abrindo o ventre: tornei-me portanto culpado de uma grande mentira aos olhos de minha mãe. Quando tudo se consumar, o que pensará ela de mim? Que a minha afeição era bem pequena, uma vez que a enganei…»
Hara não podia prosseguir viagem com um peso destes na consciência. Dá imediatamente meia volta e toma o caminho de casa, onde chega ao pôr-do-sol. Chegado à presença da idosa senhora, cai de joelhos a seus pés.
— Não te tinhas enganado, dirijo-me a Edo para vingar o meu respeitável senhor. Ser-me-á portanto impossível tornar a ver-te. Meu pai morreu; sei que devia ficar junto de ti para te consolar. Mas como poderei cumprir ao mesmo tempo os meus deveres de filho e de vassalo fiel?
— Não me enganei por um só momento – responde com doçura a dama. — Meu filho, cumpre o vosso dever para com o teu senhor; deverá ser essa a primeira preocupação de um samurai. O teu irmão cuidará de mim. Bebamos a taça da despedida.
O cavaleiro, no dia seguinte, levanta-se ao romper do dia, e vai esperar à porta do quarto da mãe, sabendo que esta se levanta sempre antes de todo o resto da casa. As horas passam. O Sol já vai alto no céu. Por volta das 10 h da manhã, à hora do dragão, o cavaleiro Hara, roído pela inquietação entra no quarto e depara com a mãe, morta.
Perto do travesseiro de madeira onde a velha senhora reclinava a cabeça, sem que o penteado tivesse sido desfeito, via-se uma carta manchada de sangue:
«Meu querido filho, a tua bondade e a tua afeição são grandes; feliz é a mãe de um tal filho. Mas é preciso que partas para o combate sem que qualquer inquietação te preocupe, senão o inimigo teria possibilidade de ver o interior do teu capacete. Precedo-te, pois, na morte, meu filho, na terra dos kami. Vê doravante no cavaleiro Kira, não só o inimigo do teu honrado senhor, mas também o carrasco da tua mãe, e dá aos teus camaradas um exemplo de heroísmo. Morro sorrindo para a faca que corta o fio da minha modesta vida. Um derradeiro adeus ao teu irmão, tua mulher, ao pequeno Fusabô e a ti, meu querido filho. A mãe.»
— Vejam todos – diz Hara – o que ela fez por mim.
E o olhar do samurai cavalgando na direcção de Edo fazia baixar os olhos aos mais corajosos – lia-se nele a morte.
Por uma outra estrada seguia Kampei e o seu semblante era assustador. Ao regressar de casa dos sogros, tinha encontrado Ichimonjiya, o patrão de uma «casa verde», a quem sua noiva se vendera para lhe proporcionar os meios da sua vingança.
Cada um dos conjurados, depois de meses de espera, tivera de «engolir» ultrajes e declinar desafios, para guardar o segredo. Às escondidas, porém, tinham reunido fundos, escondido armas e armaduras, assegurando cumplicidades e ultimado o plano de ataque.
O encontro estava marcado para o dia 14 de Dezembro, ao cair da tarde, perto do yashiki de Honjo, o solar onde residia Kira, em Edo, um bairro deserto, perto de uma grande ponte de madeira.
Nevava. Duas barcas, cujos remadores tomavam todo o cuidado para não baterem com os remos na água, vieram acostar à margem. As proas encalharam rangendo sobre as ervas geladas. Seis dos ronins, equipados como para a guerra, saltaram de cada um dos esquifes. Respiravam libertando curtas baforadas de vapor sob a lua branca, como dragões vigilantes.
Outras sombras fantasmagóricas perfilavam-se sobre a ponte, a intervalos regulares, imobilizando-se de três em três passos, para despistar os possíveis vigias dos samurais de Kira. Só um olhar particularmente vigilante poderia dar-se conta desta progressão intermitente, que durava o tempo de um abrir e fechar de olhos. Só um gato poderia ter visto, durante as suspensões da marcha, que a ponta de uma lança ou a curvatura de um arco ultrapassava as vigotas da amurada da ponte.
O yashiki era formado por um conjunto de edifícios baixos, ao fundo de uma ruela, ladeada por outras residências de notáveis. Estas casas de madeira não tinham outras saídas para o exterior além das portas, cuidadosamente barricadas do interior a esta hora tardia. Mas por cima dos telhados cobertos de neve dançavam por instantes as fagulhas vermelhas das lareiras, indicando que ainda havia gente acordada.
Oishi Kuranosuke, descendo de uma das barcas, levantou um braço. Sempre em silêncio, os seus companheiros pegaram em duas escadas e em compridas achas de lenha. Um a um, os outros ronins galgaram de um salto o espaço a descoberto que separava a ponte dos primeiros edifícios.
As escadas foram adossadas à parede do solar, sem bater em nada. A tropa dos ronins enchia agora a ruela, uma massa compacta, confundindo-se as expirações no ar frio e imóvel.
— Banzai!
Os rugidos, reprimidos durante dois anos, reboaram de súbito aos ouvidos de Kira Yoshihisa, que passava pelas brasas, agachado na sua túnica de seda, junto à lareira.
Os enormes golpes de aríete que sacodem a porta da casa marcam os batimentos desordenados do seu coração. Quase que desmaia, pois sabe que são eles. Os pesadelos, que atribuía às digestões difíceis, tinham outra razão de ser. Kira treme. O leque cai-lhe das mãos, descobrindo o horrível ricto; a face está mais branca que a pintura que usa, durante o dia, na corte.
A porta cede. O clamor dos assaltantes redobra de intensidade. Já os seus capacetes com cornos se avistam sobre os tecidos e cintilações de aço frio cortam a palidez da noite.
Os vizinhos, que ouvem o rumor do assalto, compreendem o que se está a passar – há muito tempo já que o esperavam. A noite é atravessada por ordens vindas de todo o lado. É o alarme: homens armados postam-se, de sabre em riste, em frente de cada porta. Mas defendem unicamente a neutralidade das outras casas e não intervirão, pois trata-se de uma questão de honra.
Doze samurais de Kira estavam de sentinela em Honjo. Agarram nos sabres e avançam rapidamente pelos pátios. É demasiado tarde, porém; os assaltantes surpreendem-nos semi-nus, surgindo da porta arrombada ou saltando dos tectos. Os defensores sucumbem, crivados de setas e lanças, antes mesmo de terem visto um único rosto inimigo.
Num abrir e fechar de olhos, doze grandes manchas de sangue, que alastram pela neve, assinalam os sítios onde tombaram. Um deles, o chefe, sangrando de vinte feridas diferentes, arrasta-se sobre os antebraços até aos pés de Oishi, levanta a cabeça, reconhece-o e balbucia algumas palavras que o sangue sufoca.
— Guerreiros fiéis…
Era uma homenagem. Mas uma lança prega-o ao solo e o homem imobiliza-se num último espasmo, que levanta uma nuvem de neve.
— Kira!
Oishi ataca, logo seguido por Hara, Kampei e todos os outros. Irrompem pelas alas do edifício, de sabre ensanguentado, semblante furioso. As finas tapeçarias são golpeadas, os vasos preciosos, estilhaçados. Onde está ele? Servos e servas fogem na penumbra: esbofeteados com a parte plana do sabre, voltam-se soltando gritos estridentes para esbarrarem com outros demónios.
— Kira!
Um letrado da corte, amigo do mestre-de-cerimónias, sai de uma alcova levantando os braços. Cortam-lhe cerce as duas mãos.
— Kira!
— Fugiu; escondeu-se por ali – murmura uma serva.
Por ali era um armário de uma das dependências, sob um monte de roupa suja que os sabres revolvem. A roupa começou a tremer; era Kira! Arrastam-no, empurram-no para o centro de um jardim coberto de neve, poupado pela batalha. Algumas tochas são acesas e presas ao chão. Os ronins põe-se em fila, com uma calma assustadora. Eis chegado o grande momento: a hora.
— Senhor Kira, manda buscar os teus sabres.
Nem uma palavra sai das maxilas que tremem. Um servo aparece e coloca sobre uma pequena esteira as armas do condenado. Mas este sacode a cabeça e continua de joelhos, tremendo de medo, de vergonha e de frio.
— Eu – diz Hara.
Um sorriso luminoso de ternura aflorou-lhe nesse momento nos lábios. O clarão das tochas, toda a reverberação da neve resplandecente se reflecte no relâmpago de uma lâmina pura que fustiga o ar, sopro logo seguido por um leve choque amortecido: a cabeça infamada de Kira suja a neve com uma auréola escarlate.
Os sabres são reembainhados com um estalido uníssono.
A cabeça de Kira foi então embrulhada num pano branco e todos os samurais de Asano se puseram a caminho. Instalaram-se nas barcas que os esperavam e desceram o rio até ao templo do Sengaku-ji, onde repousavam os restos mortais do seu amo. Ali, solenemente, depositaram a cabeça de Kira e o sabre que a cortou juntamente com um bilhete onde se liam as seguintes palavras:
«Décimo quinto ano da era Genroku, décimo segundo mês, décimo quinto dia. Viemos aqui com o propósito de prestar homenagem à vossa memória. Somos quarenta e sete samurais, desde Oishi Kuranosuke até ao simples guerreiro a pé, Terasaka Kichiemon, dispostos a oferecer com alegria a nossa vida por vós. É com o maior respeito que anunciamos isto ao espírito do nosso defunto amo. No décimo quarto dia do décimo quinto mês do ano passado o nosso amo atacou Kira Yoshihisa por razões que ignoramos. Foi depois obrigado a suicidar-se, mas Kira continuava vivo. Embora depois do decreto do governo receássemos que esta conspiração desagradasse ao nosso suserano, nós, que comemos da sua comida, podemos, sem corar, repetir estes versos: «Não viverás sob o mesmo céu, nem pisarás a mesma terra que o inimigo do teu pai ou do teu senhor.» Do mesmo modo não ousaríamos sair do Inferno e apresentarmo-nos no paraíso sem termos terminado a obra de vingança que tínheis começado. Cada dia que passava parecia-nos tão comprido como três Outonos. Em boa verdade, andámos dois dias na neve, parando uma única vez para comermos. Mesmo os velhos e os decrépitos, os doentes e os fracos vieram dar alegremente a vida. Eis a cabeça de Kira e a lâmina que a cortou. Que o vosso ódio seja para sempre aplacado. Esta é a respeitosa declaração de quarenta e sete samurais…»
Depois, declaram-se prisioneiros. O povo de Edo aclamou-os como se fossem heróis e o próprio xógum admirou a sua constância e coragem. Mas a lei era a lei. Primeiramente, Tsunayoshi decretou que todos aqueles que tentassem vingar os quarenta e sete ronins seriam considerados como criminosos e punidos como tal. Pretendia desse modo desencorajar, antecipadamente, as represálias dos guerreiros de Uesugi, parentes de Kira.
O conselho xogunal reuniu-se em seguida para decidir o procedimento a adoptar. As deliberações duraram meses. As discussões chegaram ao fim no dia 1 de Fevereiro de 1703: os ronins foram convidados a cometer o suicídio ritual, o que lhes evitaria a desonra.
Foi no dia 4 de Fevereiro que se desenrolou a atroz cerimónia. Realizou-se ao ar livre e começou logo ao nascer do dia. Os condenados, que tinham sido postos sob a guarda de daimios de alta estirpe, observaram todas as regras da cortesia tradicional nesses casos. Apresentaram-se envergando túnicas de linho branco no recinto também revestido de branco – cor do luto – e que fora convenientemente orientado em relação ao Sol, segundo o muito antigo código do seppuku. Nos quatro cantos vieram instalar-se testemunhas ou delegados, na sua maioria parentes dos condenados.
Sobre as esteiras que cobriam o solo tinham sido estendidos lençóis de algodão. O cerimonial determinava que assim fosse para que os condenados pudessem andar sem sandálias; não seria conveniente perderem uma a meio do caminho. Até tinham fixado o ponto do horizonte para onde eles se deveriam voltar, e também com a maior precisão, a fórmula que deveriam pronunciar. Ei-la:
«Senhores, não tenho nada para dizer; no entanto, como foram suficientemente bondosos para pensarem em mim, peço-vos que apresentem os meus respeitos ao vosso suserano, assim como aos fidalgos do vosso clã que tão bem me trataram. Ficar-vos-ia muito grato se tivessem a bondade de transmitir esta mensagem a…»
Confiavam então o último poema, destinado a um parente próximo ou a um amigo e acocoravam-se, o rosto voltado para o norte. Os assistentes, imóveis e silenciosos, dispunham-se em semicírculo, a alguma distância deles.
O kaishaku, auxiliar qualificado, dizia então:
— Como vou ter a honra de vos cortar a cabeça, gostaria de utilizar o vosso sabre para o efeito. Será para vós, não tenho dúvida, uma consolação ser degolado por uma arma que vos é tão familiar…
Com um gesto, o samurai designava as suas armas, colocadas sobre um pequeno escabelo, perto da selha que, daí a instantes, receberia a sua cabeça.
Um grande perfumador liberta um forte odor de incenso. O supliciado não tem mais que estender a mão para agarrar no sabre curto, colocado à sua frente, no seu estojo de madeira. Por detrás dele, o kaishaku, com um semblante nada triste, verifica se tudo está conforme as regras.
Não comporta qualquer heroísmo saber cortar bem uma cabeça, mas seria desonroso fazê-lo desajeitadamente. No entanto, um homem não deve invocar a sua falta de habilidade para se esquivar a esta obrigação, pois é indigno de um samurai não saber decapitar um homem: se fosse preciso recorrer ao braço de um estranho num caso destes, seria praticamente confessar ignorância das artes da guerra – uma vergonhosa humilhação. Evitava-se, apesar de tudo, os jovens ainda estouvados ou indivíduos susceptíveis de perder o sangue-frio.
O seppuku dos ronins foi exemplar. As quarenta e seis cabeças caíram como deviam.
Faltava um homem: aquele que Oishi encarregara, depois do assalto, de informar a família de Asano que o suserano fora vingado; comparecera também perante a justiça, logo que regressou, mas foi perdoado, pois o processo fora encerrado. Viveu até aos 83 anos; mas como fazia parte dos quarenta e sete ronins, foi enterrado ao lado dos seus companheiros.
São, aliás, quarenta e oito os túmulos venerados perto do templo de Sengaku-ji, pois Murakami Kikeq veio, pouco depois das exéquias dos heróis, matar-se, sozinho, diante dos restos mortais de Oishi, a quem um dia chamara cobarde.
Também ele; cumpriria os gestos rituais do seppuku:
Tira lentamente o sabre da bainha; o aço azul cintila com um brilho pesado. Envolve depois a lâmina, com uma fita branca de modo a deixar livres, na ponta, cinco polegadas de aço…

Sobre o Bushido

Há no japonês uma designação geral para todas as virtudes que distinguem o homem cavalheiresco. Ela abrange as virtudes da fidelidade e o dever, da distinção e veneração, da coragem e da modéstia, da resistência e espírito de sacrifício até ao abandono incondicional. Da soma destas virtudes resulta um determinado ideal de vida, que é obrigatório para cada japonês e, por isso, todos procuram segui-lo na sua maneira de proceder. Mas a imposição deste dever é para o soldado ainda muito mais elevada do que para o civil. O ideal provém da vida militar. Era outrora um ideal característico duma classe de militares de carreira: o Samurai. Da época dos samurais provem também o nome desta atitude basilar determinada por essas virtudes: Bushido.
Bu-shi-do significa literalmente: “Guerreiro–Senhor–Caminho (ou práticas)”, ou seja, as “práticas”, os preceitos que devem observar os guerreiros nobres tanto na sua vida diária como no exercício da sua profissão.
Bushido não é um código escrito mas consiste sobretudo na observância de certas máximas transmitidas oralmente ou escritas por um sábio, monge, ou guerreiro famoso. Clãs houve que adoptaram, escreveram e explicaram essas máximas fazendo delas rigorosas regras de conduta. No entanto, importa também perceber como o Bushido penetrou e impregnou a alma de todo o povo japonês até aos nossos dias.
Historicamente é comum reportarmos o aparecimento desta Ética Cavalheiresca, que se viria mais tarde a designar de Bushido, ao séc. XII, período que na Europa se designou de Feudalismo e que de igual modo viu também nascer a Cavalaria e as ordens monástico militares. Estas similitudes, que parecem obra do acaso (serão mesmo?), fazem-nos lembrar outros períodos históricos que em pontos diferentes e distantes viram nascer na mesma época Homens Sábios como Sócrates, Platão, Sidharta Gautama (Buda), Lao-tsé e Confúcio! Há épocas em que a Natureza nos presenteia com boas colheitas, pena é que muitas vezes não saibamos apreciar os seus sabores…
No Japão, a essa classe de nobres guerreiros chamaram-lhes samurais, aqueles que servem, guardas, protectores, cavaleiros. E foi assim que esta “raça” de bravos, como os cavaleiros medievais europeus, iriam ter uma enorme importância no País do Sol Nascente e viram a sua actividade estar no centro de todo o desenrolar de acontecimentos, sobretudo nas constantes guerras que assolaram o país.
Porque é que indivíduos escolhidos e treinados para a guerra e portanto para matar ou morrer, muitas das vezes com uma frieza, uma calma, ou num espécie de transe fanático eram impulsionados para a morte com suas espadas em riste pela “simples” razão de cumprimento de dever de fidelidade ao seu Senhor? A arte do samurai é a guerra, Bushido é morrer com Honra. Diz-nos o Hagakure: O caminho do Samurai está no desespero. Nem dez ou mais adversários podem matar um homem desesperado… Não é preciso lealdade ou devoção, basta se perder a razão no Caminho. A própria lealdade e a devoção se encontram no desespero.
Para se ser um Samurai perfeito é preciso preparar-se para a morte, a ideia de morte tem que estar presente de manhã, à tarde e à noite. Morrer, é o que nos vai acontecer mais cedo ou mais tarde. Então porquê agarrarmo-nos à vida se assim a perdemos.
Vamos então procurar entender quais as “drogas” que estes Senhores tomavam para que se tornassem em exemplo de disciplina, abnegação, honra, fidelidade, serviço… e também, embora muitas vezes esquecida, compaixão. É certo que um samurai não hesitava em matar alguém se assim lhe ditasse a “sua vontade” mas da mesma forma ele cortava as próprias entranhas (Seppuko) se a sua conduta ficasse por isso manchada.

AS FONTES DO BUSHIDO

O BUDISMO
O budismo japonês exerce a sua educação num sentido de uma atitude muito enérgica, muito corajosa e activa perante a vida.
Mas tal como este budismo não pretende desvalorizar a vida, também não ensina que ela seja o valor mais elevado. Segundo a concepção budista, aquela realidade em que decorre a nossa vida é no fundo apenas uma aparência comparável a uma sombra ou sonho. Nesta vida é preciso revelar coragem, mas aquilo que o homem deve ambicionar não se esgota nesta vida.
A realidade terrena e a vida humana são afinal somente uma transição para uma existência mais elevada e a morte é ao mesmo tempo apenas o limiar para essa vida. Isto retira ao homem muito do que causa ao ser humano horror ou receio perante a morte.
Nas sábias palavras de Inazo Nitobe (autor de «Bushido, o coração do Japão»): O Budismo que procura um sentimento de confiança sereno no destino, a submissão tranquila ao inevitável, o sangue frio estóico frente ao perigo ou à desgraça, o desdém à vida e o amável acolhimento da morte.
Um dos mestres de esgrima mais famosos, quando viu o seu aluno chegar à mestria suprema na arte, disse-lhe: “agora o meu ensino deve deixar lugar ao Zen”.
E é do Zen-budismo que agora vamos falar e para tal continuamos a socorrer-nos de gente diferenciada:
D. T. Suzuki diz-nos: A meta do arqueiro não é apenas atingir o alvo; a espada não é empunhada para derrotar o adversário; o dançarino não dança unicamente com a finalidade de executar movimentos harmoniosos. O que eles pretendem, antes de tudo, é harmonizar o consciente com o inconsciente.
Para ser um autêntico arqueiro, ou espadachim, o domínio técnico é insuficiente, é necessário transcendê-lo, de tal maneira que ele se converta numa arte sem arte, emanada do inconsciente.
Mas o que é o Zen?
O Zen tem as suas origens no Budismo Dhyana que significa literalmente “contemplação” (meditação). É um dos seis paramitas (perfeições, virtudes) do Budismo. Com a passagem do Budismo pela China este adaptou-se ao país de acolhimento e absorve algumas influências locais, designadamente do Taoismo (de Lao-tsé). É na China que o Budismo Dhyana, agora T’chan, atinge a maturidade e é com a passagem para o Japão que ele se “refina” e impregna todo o país onde se fez uma Tradição Viva que subsiste até hoje nas mais variadas formas de arte.
Deitamos mão a outro extraordinário livro escrito por um ocidental, professor e filósofo alemão que viveu durante muitos anos no Japão – Eugen Herrigel – que na sua simples e sublime obra, «A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen», nos transporta para, como ele lhe chamou, a doutrina magna do tiro com arco, o Kyudo.
«Desde a primeira aula, fomos alertados de que o caminho que conduz À ARTE SEM ARTE é áspero.
…Áspero é o caminho do aprendizado. Muitas vezes a única coisa que mantém o discípulo animado é a fé no mestre, em que só agora reconhece o domínio absoluto da arte: com a sua vida, dá-lhe o exemplo do que seja OBRA INTERIOR, e convence-o apenas com a sua presença.
E por fim quando a técnica é dominada e a tensão (do arco) é libertada sem (a minha) intenção – ALGO dispara. Algo Atirou e Algo Acertou. Inclinemo-nos diante da nossa meta, como se estivéssemos diante de Buda.
…Sob a influência do Zen, A HABILIDADE SE ESPIRITUALIZOU. E é assim que o samurai torna-se cada vez mais indiferente a tudo que possa amedrontá-lo. Através de longos anos dedicados à meditação ele descobre que no fundo, a vida e a morte são uma única coisa, e que ambas pertencem ao mesmo plano do destino. Ele não sente angústia de viver, nem o terror da morte. Apraz-lhe – e isso é característico do espírito Zen – viver no mundo, mas está sempre preparado para abandoná-lo, sem que a ideia da morte o perturbe. Não foi por casuali­dade que o samurai escolheu a flor de cerejeira como o seu símbolo. Assim como a pétala, reflectindo o pálido raio do sol matinal, se desprende da flor, o homem intrépido se desprende, silenciosa e impassivelmente, da existência.
Viver sem medo da morte não significa que, durante as horas felizes, nos gabemos de não tremer diante dela, nem que possamos afirmar que a enfrentamos com segu­rança. Porém, quem domina a vida e a morte está livre de todo temor, a tal ponto que não é mais capaz de experi­mentar a sensação de medo. E quem não conhece, por experiência própria, o poder da meditação séria e "prolon­gada não pode imaginar as vitórias sobre nós mesmos que podemos obter. Seja como for, o mestre verdadeiro revela sua coragem com atitudes, jamais com palavras. Quem o conhece não pode deixar de se impressionar profundamen­te. São raras as pessoas que conseguem manter uma inaba­lável impassibilidade, e que só por isso devem ser chamadas de mestres. Para ilustrar o que acabo de dizer, transcreverei na íntegra uma passagem do Hagakure, datado de meados do século XVII.
«Yagyu Tajima-no-kami (foi neste mestre que Takuan se inspirou para escrever o seu tratado intitulado «A impassível compreensão») era um grande mestre-espadachim e professor do xógum Tokugawa Jyemitsu. Cer­to dia, um dos seus guardas se aproximou de Tajima­no-kami e pediu-lhe que o aceitasse como aluno, ao que o mestre respondeu: “Pelo que vejo, o senhor já é um mestre. Peço-lhe que me diga a que escola pertence, antes que entremos na relação mestre-discípulo”. O guarda observou que se envergonhava de dizer, mas jamais tinha aprendido a arte da esgrima. “O senhor está a brincar comigo? Sou o mestre do venerável xógum e sei que meus olhos jamais se enganam.” O guarda insistiu: “Lamento ofender a sua honra, mas a verdade é que jamais tive qualquer conhecimento desta arte”. Frente a tão segura negativa, o mestre vacilou um momento, ao final do qual disse: “Como o senhor afirma, não vou desmenti-lo, mas segura­mente o senhor é mestre em alguma outra disciplina, embora eu não saiba qual seja”. Respondeu-lhe o guarda: “Pois bem, como o senhor insiste, devo dizer-lhe que existe uma coisa na qual me considero mestre. Quando eu era criança, ocorreu-me a ideia de que um samurai não tem o direito de temer a morte em qualquer circunstância, e desde então lutei continuamente com a ideia da morte, até que ela deixou de preocupar-me. Talvez seja a isso que o senhor se refere”. Mal ouvira tais palavras, Tajima­no-kami exclamou: “Exactamente! Alegro-me que não me tenha enganado, pois o último segredo da arte da espada é atingir a libertação da ideia da morte. Tenho mostrado essa meta a centenas de alunos, mas até agora nenhum alcançou o grau supremo na arte da espada. O senhor não precisa de qualquer treino, porque já é um mestre.»
Se a superação do medo da morte, ou pelo menos o auto-controlo corajoso para enfrentar um perigo mortal, é de máxima importância na formação do samurai, também o é a educação ética e filosófica. E se Budismo já por si imbui os seus discípulos de uma elevada moral, foi o confucionismo que veio estabelecer padrões e comportamentos da nobreza cavalheiresca e por consequência de todo o povo nipónico.
Não importa só, para que se atinja uma Ordem Guerreira, que os seus integrantes não temam a morte, qualquer bandido, pode, e muitas vezes “mais facilmente” ultrapassar esta fronteira usando os caminhos negros da imoralidade, da ausência de escrúpulos e de qualquer farol ético, conseguindo assim na sua vertigem usar, não os sentimentos, mas as emoções mais primitivas para se lançar destemidamente em aventuras escabrosas, no assassínio, no roubo e em todas as violações… o lado negro da força. Ou como Shakespeare lhe chamou: a bravura bastarda.
Recordemos algumas máximas e ensinamentos do grande filósofo chinês.

CONFÚCIO
«Se o príncipe conduz o povo por meio de leis e o mantém na unidade por meio de castigos, o povo se abstém de agir mal; mas não conhece vergonha alguma. Se o príncipe dirige o povo pela virtude e faz reinar a união graças aos ritos, o povo tem vergonha de agir mal e se tornará virtuoso.
Levar o povo à guerra, antes de tê-lo instruído é levá-lo à sua perda.
O homem honroso, mesmo em pensamento, não sai do seu lugar.
O homem honroso espera tudo de si mesmo, o homem de pouco, espera tudo dos outros.
Não se corrigir depois de um erro, eis o erro.
Antigamente, eu passava dias inteiros sem comer e noites inteiras sem dormir, para me entregar à meditação. Colhi poucos frutos. É melhor estudar.
Os verdadeiros homens são sempre mais fortes que a fome que sentem. Os fracos, e somente esses, se entregam ao desfalecimento.
A minha ambição é que os velhos possam viver em paz, que os amigos sejam leais e que os moços amem os mais velhos.
Governar é endireitar o povo.
O homem sábio aspira à perfeição; o homem vulgar, ao bem-estar; o primeiro se preocupa em observar as leis, o outro, em solicitar favores.
Raramente nos perdemos se nos impusermos a nós mesmos, regras severas.
A linguagem deve exprimir com clareza o pensamento. Isto é tudo.»
A filosofia de Confúcio visa a uma organização nacionalista da sociedade, baseando-se no principio da simpatia universal que devia obter-se por meio da educação. Estendia-se do indivíduo à família e desta ao Estado – a grande família.
A piedade filial, que está presente na ética samurai, é talvez a característica mais importante no sistema confucionista. Segundo o confucionismo, a piedade filial requer, em geral, que um filho respeite afectuosamente os pais, proveja as suas necessidades e carências enquanto vivos, e recordem deles o carinho, afeição e o respeito, quando morrerem.
Acima de tudo, porém, requer uma vida nobre para manter a honra e o bom-nome da família. Talvez compreendamos melhor agora porque é que os samurais antes de entrarem em combate, ocasionalmente, referissem com orgulho e a alta voz quem eram, quem era a sua ascendência e o seu clã.
Consideremos assim que a família era para Confúcio o ponto de partida lógico para o desenvolvimento moral e o lar deve ser a escola básica, preparatória das virtudes cívicas.

Rectidão e Justiça
Mencio, discípulo de Confúcio, dizia que a bondade é a alma do homem e que a rectidão ou honradez são a sua vida. Que triste – exclamava ele – descuidar esta via e não segui-la, perder a alma e não saber encontrá-la. A rectidão é um caminho direito e estreito que o homem deve tomar para recuperar o paraíso perdido.
A rectidão é a irmã gémea do Valor, outra virtude marcial. Dizia Confúcio – Saber o que é justo e não o fazer, demonstra ausência de valor. O valor é fazer o que é justo. Assim se define um Cavaleiro que morre e vive defendendo o seu Nobre Ideal. É próprio do verdadeiro valor – viver quando faz falta viver e morrer somente quando faz falta morrer.
Quando o valor atinge a sua cúspide assemelha-se à Bondade, mas como nos diz uma outra máxima – A rectidão levada ao excesso converte-se em dureza. A bondade praticada sem medida degenera em debilidade. Nada em excesso ensinavam os antigos Estóicos.
A Bondade e a Cortesia andam de mãos dadas mas estas não passarão de coisas insignificantes se camuflarem medos ou receios de ofender o outro e daí sujeitarem-se às consequências.
A Paciência e a Resistência prolongada foram também altamente preconizadas por Mencio. Escreve assim – Que esqueças toda a moderação e me insultes, que me importa a mim! Não podeis manchar a minha alma com o vosso ultraje. Noutra vez ensina-nos que – Encolerizar-se por uma ofensa mínima é indigno de um homem superior, mas a indignação por uma grande causa está justificada.

Honra
Não permitas que a ideia de uma vida longa ganhe poder sobre ti, pois de contrário serias capaz de te perder e acabar os teus dias com vergonha.
Se tu morres sem alcançar o objectivo, essa morte pode ser mais inútil que a morte de um cão, a morte da loucura, mas a tua honra não é manchada. Para o Bushido em primeiro lugar está a honra.
O sentimento de honra que implica uma consciência muito subtil do valor e da dignidade pessoal, não podia deixar de ser a característica dos Samurais, nascidos e educados na estima dos deveres e dos privilégios da sua profissão. Ainda que a palavra geralmente usada em nossos dias para expressar a ideia de honra não foi correntemente empregada, a ideia, não obstante, era traduzida por termos tais como «na» (nome), «menmoku» (comedimento) «guai-bun» (atenção exterior), termos que, respectivamente, nos evocam a evolução do termo «personalidade» originária da «mascara grega», em resumo, a «reputação». Um bom-nome é a sua reputação a parte imortal de si mesmo prescindindo do elemento bestial. Conseguir uma boa reputação era um elemento fulcral, e este bom-nome podia (era) ser transmitido, sendo por conseguinte um património de família. Manchar este bom-nome por má conduta ou por receber graves ofensas, levava obrigatoriamente ao sentimento de vergonha, com o qual toda a juventude era educada. Frases (incentivos, estímulos) como: – Não tens vergonha? – Toda a gente te gozará! – Isso não é digno do filho de um samurai. – Aprende a honrar o nome da tua família, etc., faziam parte dessa educação.
Com efeito, o sentimento de vergonha parece-me ser o primeiro signo da consciência moral de uma raça.
Como Mencio havia ensinado – A vergonha é a terra que abona todas as virtudes, as boas maneiras e os bons costumes.
Mas (repetimos) – ofender-se por uma provocação ligeira era ridicularizado como uma falta de domínio sobre si mesmo.

Fidelidade
O desprezo pela morte do samurai, a virtude mais importante do bushido, tem ainda outra raiz doutrinária. Quando o soldado japonês morre, a sua última palavra é uma saudação de veneração ao Micado. “Sua Majestade o imperador, banzai” – Esta é a última saudação com que o soldado japonês morre. Os últimos pensamentos são, portanto, dirigidos para o imperador. O que agita as outras pessoas nos últimos momentos: a vida, o futuro, o lar, a família – tudo isto é substituído no coração do combatente pelo pensamento no Micado. Num velho e conhecido versículo samurai diz-se:
Vais como homem para a guerra:
Três coisas deste mundo
Jamais poderão existir em ti:
O Lar – os teus – a vida!
O Micado é mais que o imperador. Ele é uma divindade. Não é um encarregado de Deus ou um eleito de Deus, ou um sacerdote ou representante de Deus. Ele é o descendente da Rainha do Sol (Amaterasu) e é dotado de autoridade e dignidade divina.
Isto é o Xintoísmo, a religião nativa do Japão, e a terceira, e não menos importante, fonte espiritual do Bushido. É antes de qualquer influência, o componente básico de toda a cultura japonesa. O seu culto remonta aos longínquos anos da chamada Pré-História e estende-se até aos nossos dias, sendo a célula matriz de toda a organização social do povo japonês. Culto ligado à Natureza, o Xintoísmo exprime através de ritos específicos os laços harmoniosos que se manifestam no quotidiano dos homens e na sua ligação ao divino.
E sem nos alongarmos, para no final terminarmos este nosso trabalho com uma notável história de Honra e Fidelidade, expomos alguns contributos do Xintoísmo ao Bushido:
- Fidelidade ao Tenno. Esta implica ao Estado, às instituições, ao povo e ao Japão. Que como já referimos atinge o seu ponto culminante no desejo sublime de “morrer” (dar a vida) pelo imperador.
- O culto dos antepassados. Fisicamente “filhos dos Kami”, os japoneses pressentem o seu parentesco celeste que se traduz, a nível dos clãs pela veneração do deus do nome da família: O uji kami. Daqui também a devoção filial.
- A essência do Yamato, o espírito místico-espiritual do patriotismo nipónico. Criação divina, natureza sagrada do Dai-Nippon.
- O sentimento de pureza. A pureza ritual é um dado capital do Xintoísmo. Daí a quantidade de ritos de purificação que o Bushido impõe ao samurai: Ablução em cascatas, jejuns, ascensão de montanhas, etc.
- O sentimento de sinceridade (shin). Este implica as ideias de verdade, de honradez e de lealdade, mas obriga também o samurai a desprezar o seu interesse pessoal, a ideia do lucro e a apagar as humanas paixões. A estes contributos, é necessário acrescentar o significado sagrado da espada.

O sabre: a alma do samurai
O Bushido fez do sabre o emblema do seu poder e das suas proezas. Desde muito jovem o samurai trinava no seu manejo e se iniciava nos regulamentos da profissão das armas. Aprendia assim a amar o seu sabre, a sentir o seu poder e a identificar-se com ele. Aos quinze anos, idade de emancipação, quando atingia a condição de homem, o jovem samurai jamais saía de casa sem portar visivelmente a sua alma – o seu sagrado sabre.
O que forjava os sabres não era um simples artesão, mas um artista inspirado e o seu atelier um santuário. Todos os dias iniciava o seu labor com uma oração e com a purificação, segundo se dizia: Ligava a sua alma e seu espírito ao aço que forjava e temperava. Cada golpe de martelo, cada têmpera, cada gesto, era assim um acto religioso de grande importância.
E assim se dizia que o samurai «não leva em vão a sua espada, o que leva na sua cintura é o símbolo do que leva em seu coração: Lealdade e Honra.»
Terminemos assim este “nosso trabalho”, (na realidade como alguém dizia, já está tudo escrito, falta por em prática!) com a verdadeira e fascinante história dos 47 Samurais e deliciem-se pois o que atrás escrevemos está aqui tudo posto em prática.

«Nivelamento por baixo»

A conclusão que se deduz nitidamente de tudo isto, é que a uniformidade, para ser possível, suporia seres desprovidos de todas as qualidades e reduzidos a simples «unidades» numéricas; é por isso que uma tal uniformidade nunca é realizável de facto, e todos os esforços feitos para a realizar, nomeadamente no domínio do humano, só podem ter como consequência o desprover mais ou menos completamente os seres das suas qualidades próprias, e desse modo, fazer deles qualquer coisa parecida com simples máquinas, porque a máquina, produto típico do mundo moderno, é bem aquilo que representa, ao mais alto grau jamais atingido, a predominância da quantidade sobre a qualidade. É para isso que tendem, do ponto de vista social, as concepções «democráticas» e «igualitárias», para as quais todos os indivíduos são equivalentes entre si, o que leva à suposição absurda de que todos devem estar igualmente aptos para tudo; esta «igualdade» é algo de que a natureza não oferece nenhum exemplo, pelas razões que acabámos de indicar, já que se assim fosse, ela não seria mais do que uma completa semelhança entre os indivíduos; mas é evidente que, em nome desta pretensa «igualdade», um dos «ideais» ao invés mais caros ao mundo moderno, fazem os indivíduos o mais semelhantes que a natureza permite, e para isso, primeiro que tudo, pretendendo impor a todos uma educação uniforme. É claro que, como não se pode suprimir inteiramente a diferença das aptidões, essa educação não dá em todos os mesmos resultados; mas também é verdade que, se é incapaz de dar a certos indivíduos as qualidades que eles não têm, pelo contrário, é capaz de abafar noutros todas as possibilidades que ultrapassam o nível comum; é assim que o «nivelamento» se faz sempre por baixo.

- René Guenon, O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, Publicações Dom Quixote, 1989, p. 53

Em vésperas de solstício...

O legionário acompanha a roda da vida e vive de solstício em equinócio e de equinócio em solstício, porque é nestas datas que, em comunhão com os seus camaradas, festeja os vivos e homenageia os mortos. Os mártires e heróis que não claudicaram, que lutaram, que ganharam ou perderam, mas sobretudo não traíram.
A Honra é nossa Pátria a Fidelidade nossa Mãe!

Avé!

(Editorial do Boletim Evoliano, nº 5)

Julius Evola: Presente!

19/05/1898 - 11/06/1974

«Apenas conta, hoje, o trabalho daqueles que se sabem manter no cume: firmes nos princípios; inacessíveis a todo o compromisso; indiferentes perante as febres, as convulsões, as superstições e as prostituições, ao ritmo das quais dançam as últimas gerações. Apenas conta a resistência silenciosa de um pequeno número, cuja presença impassível de “convivas de pedra” permita criar novas relações, novas distâncias, novos valores, para criar um pólo que, não impedindo, é certo, este mundo de desenraizados e agitados de ser o que é, permitirá, todavia, transmitir a alguns a sensação da verdade, sensação essa que será talvez também o despoletar de alguma crise libertadora.»
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